quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Problemas com os Primeiros Termoscópios

Alexandre Medeiros (PhD, University of Leeds – Professor de Física e Astronomia, UFRPE)

Problemas com os Primeiros Termoscópios
Há registros escritos de que Jean Rey (1582-1645), médico francês, propôs, com efeito, em 1631, a modificação do termoscópio de Galileu. A modificação consistia apenas em inverter o instrumento de Galileu, enchendo a ampola com água e mantendo-a na parte inferior com o tubo voltado para cima. Essa simples inversão, no entanto, mudava por completo o funcionamento do aparelho. Agora era a dilatação da própria água, e não mais de uma certa massa de ar, que faria a coluna líquida subir ou descer. Em outras palavras, a substância termométrica deixava de ser o ar para ser a água.
Numa carta escrita ao padre e matemático francês Marin Mersenne (1588-1648), datada de 1 de janeiro de 1632, Rey escreveu: "Para fazer uso dele, eu o coloquei ao Sol e algumas vezes nas mãos de um paciente com febre, tendo enchido completamente, exceto o tubo; o calor expandindo a água faz com que ela suba mais ou menos, de acordo com o maior ou menor calor".
Note-se a imprecisão na linguagem utilizada por Rey, na qual a distinção entre calor e temperatura ainda não se fazia presente àquela  época.
Observe-se também que o tubo, no termoscópio de Rey, continuava aberto e, portanto ainda sob a influência da pressão atmosférica, mesmo que esta influência fosse então muito pequena, pois os líquidos, diferentemente do ar, são praticamente incompressíveis.  A evaporação do líquido, por outro lado, era um inconveniente adicional ocasionado igualmente pela extremidade aberta do tubo de vidro.
Alguns historiadores têm creditado ao próprio Galileu, embora sem registros históricos precisos, a primazia de ter não apenas antecipado a contribuição de Jean Rey, mas também de ter, por volta de 1612, selado a parte superior do tubo de vidro. Galileu teria, portanto, segundo esta versão, enchido com água a ampola do seu instrumento e vedado a extremidade superior do tubo, até então aberta.
Ainda que uma tal versão não pareça ter o devido respaldo histórico, caberia salientar que a tentativa de utilizar a água como substância termométrica teria conferido ao novo instrumento fechado de Galileu uma performance decepcionante. Apesar de poder, com tal hipotética modificação de selagem do tubo, evitar a interferência da pressão atmosférica, a água enquanto nova substância termométrica em substituição ao ar seria extremamente problemática. Com efeito, a água dilata-se muito pouco em comparação, por exemplo, com o álcool, tornando as leituras difíceis e apresentando irregularidades nas proximidades da temperatura de seu congelamento.

O que parece um fato histórico bem documentado, é que o Duque Ferdinand II de Médici (1610-1670), discípulo de Galileu, construiu em 1641 um termoscópio Segundo as linhas descritas acima, utilizando, além disso, álcool, ao invés de água, como substância termométrica. O álcool apresentava  uma série de vantagens em comparação com a água, nem todas, no entanto,  percebidas à época. Logo de início, tornou-se claro que o álcool congelava a uma temperatura bem mais baixa que a água, possibilitando a utilização do instrumento em invernos rigorosos.
Além disso, o álcool mostrava-se mais expansivo que a água, ou seja, dilatava-se mais para uma mesma elevação de temperatura, tornando assim as leituras mais precisas. Neste sentido, o álcool constituía-se numa opção intermediária entre o ar, que se dilatava muito, e a água que se dilatava pouco. Após os trabalhos de Evangelista Torricelli (1642), uma vez estabelecida a necessidade de evitar a utilização do ar devido às influências da pressão atmosférica, o álcool passou a ser bem cotado enquanto substância termométrica a ser adotada.
Outra vantagem, não percebida à época, seria o fato do álcool dilatar-se mais uniformemente que a água, ou seja, de modo aproximadamente mais linear. Este fato, no entanto, só viria a ser completamente apreciado no século XVIII. Este é um detalhe que frequentemente não nos damos conta ao utilizarmos um termômetro. O que, no entanto, nos dá  o direito de dizermos que quando a coluna líquida de um termômetro está a meio caminho entre as marcas 0o  e 100o, a temperatura é de 50o? Isto pode parecer trivial, mas carrega, na verdade, o pressuposto da linearidade da dilatação do líquido, ou seja, da substância termométrica. Caso a dilatação não fosse linear, o líquido atingiria a metade daquele comprimento entre 0o e 100o numa temperatura não necessariamente igual a 50o. Historicamente, a dilatação linear da substância termométrica com a elevação da temperatura permaneceu, por muito tempo, como um pressuposto tácito, oculto, na construção dos termômetros.

Apenas em 1723, o matemático inglês Brook Taylor (1685-1731), mais conhecido pelo seu estudo das séries matemáticas, viria a tornar explícito que o óleo de linhaça, uma substância termométrica usual àquela época, dilatava-se linearmente com o recebimento de calor. A água apresentava ainda o problema adicional de sua dilatação anômala próximo do ponto de fusão do gelo, quando uma elevação de temperatura provocava uma contração ao invés de uma esperada dilatação.
Esta dilatação irregular da água, no entanto, não viria a ser, inicialmente, um fator determinante na utilização dos termômetros a álcool, pois a própria existência de tal fenômeno permaneceria por muito tempo como matéria de disputa. Embora apontada por Robert Hooke desde a metade do século XVII, e reafirmada pelo geólogo francês Jean De Luc em 1776, a referida irregularidade na dilatação da água só viria a ser aceita após a realização do célebre experimento do químico escocês Thomas Hope, em 1805.
Um melhoramento fundamental, introduzido por Ferdinand II, foi fechar a extremidade, até então aberta, do instrumento, impedindo assim simultaneamente a evaporação do álcool e a influência das variações da pressão atmosférica. Seu instrumento já não era mais um termobaroscópio, como o de Galileu, mas sim um verdadeiro termoscópio, pois não apresentava variações com a pressão atmosférica, pelo fato de ser lacrado. Rigorosamente falando, no entanto, não era ainda um termômetro, pois não continha uma escala confiável baseada em pontos fixos bem determinados. A denominação do instrumento como um  termômetro, no entanto, tornou-se dominante, ainda que tal nomenclatura não nos pareça, atualmente, correta.
A questão da escolha de uma escala conveniente para a calibração dos termômetros era algo bastante complexo. Para começar, a existência de temperaturas constantes nas mudanças de fase não era ainda um fato bem estudado. Em 1668, Hooke defendeu a ideia de que poderia ser observado que em todos os corpos, as temperaturas de fusão e ebulição, são constantes. Tal ideia, sabemos hoje, não corresponde exatamente à realidade, pois  mesmo deixando de lado a variação com a pressão, apenas as substâncias cristalinas apresentam uma temperatura definida de transição de fase, ou seja, não há ponto fixo de mudança de fase para substâncias amorfas. Ainda assim, uma tal ideia, apesar da limitação de seu contexto de validade, constituir-se-ia num enorme avanço dado por Hooke. Esta mesma ideia de constância das temperaturas nas transições de fase, viria posteriormente a ser defendida por Jean De Luc, em  1754, e de forma mais convincente,  por Black, em 1757.
 Como consequência deste debate a respeito das temperaturas de mudanças de fase, a escolha de pontos fixos para a calibração dos termômetros permaneceu como algo extremamente polêmico, durante todo o século XVII. A constância da temperatura de fusão do gelo foi aceita bem antes que a da ebulição da água. A maior influência da pressão atmosférica sobre a temperatura de ebulição, fez com que a mesma não fosse bem aceita, por muito tempo, como um bom candidato a ponto fixo na calibração dos termômetros.
Diante dessa dificuldade de encontrar temperaturas constantes na natureza que pudessem servir de bons referenciais no estabelecimento das escalas termométricas, as opções adotadas pelos cientistas variavam. Estabeleceu-se uma disputa entre duas principais abordagens. De um lado, a adoção de um termômetro padrão, instrumento este que deveria ser fielmente copiado para que pudéssemos ter medidas comparáveis. De outro lado, a adoção de uma escala padrão, que uma vez bem estabelecida poderia vir a ser empregada em diferentes termômetros, com características de material, tamanho e outros detalhes de fabricação, não necessariamente semelhantes.
A questão da escolha dos pontos fixos apresentava-se na adoção da segunda opção, a do uso de uma escala padrão. Deste modo, duas correntes secundárias de pensamento apareceram dentre os que defendiam esta abordagem. Uma delas era a escolha de um único ponto fixo e um certo tamanho para o grau relacionado com a dilatação da substância termométrica escolhida.

Esta alternativa de adotar um único ponto fixo foi proposta de forma explícita e simultânea, em 1665, por Robert Boyle, Robert Hooke, Christiaan Huygens e Edmé Mariotte. A ideia consistia em marcar no tubo do termômetro um único ponto fixo, determinado experimentalmente. Tal marca serviria como ponto de partida para colocar as marcas dos graus no tubo. Cada grau corresponderia a uma certa fração, digamos 1/1000, do volume da substância termométrica quando esta estivesse à temperatura correspondente ao ponto fixo. Para um tal ponto fixo, Boyle sugeriu a temperatura de congelamento do óleo de semente de anis, Hooke a temperatura de congelamento da água e Huygens, a temperatura de congelamento ou a temperatura de ebulição da água.
Esse método era, no entanto, de difícil adoção, pois necessitava do conhecimento das características de dilatação do líquido. A alternativa simplista de definir um certo tamanho do grau medido diretamente no termômetro faria recair na primeira opção de termos de construir instrumentos idênticos. A segunda corrente de pensamento, dentre os que defendiam a escolha de uma escala padrão, era a adoção de dois pontos fixos e a consequente divisão do intervalo num certo número de graus. Esta alternativa, que já havia sido adotada originalmente por Sanctorius, trazia a vantagem de que se poderiam utilizar termômetros de materiais e tamanhos diferentes e ainda assim obter medidas semelhantes  de temperatura. A enorme dificuldade, no entanto, estava em encontrar e escolher não apenas uma, mas duas temperaturas constantes e facilmente reprodutíveis que pudessem servir de referências como pontos fixos.
Dentro deste quadro, o problema das temperaturas fixas permaneceu sem uma definição clara, durante todo o século XVII e muitos preferiram simplesmente ignorá-la. Deste modo, numerosos termoscópios, já então indevidamente denominados de termômetros, foram construídos contendo escalas arbitrárias de oito ou dez graus, com uma divisão média temperada. A escala, neste sentido, era concebida como uma escala qualquer de qualidades. Dentre aqueles pioneiros que insistiam no estabelecimento de escalas mais precisas persistia a polêmica sobre a adoção de determinadas temperaturas fixas - em especial a da ebulição da água, altamente variável com a pressão.
Muitas foram as soluções imaginadas, todas elas incompletas e insatisfatórias. Dentre as mais interessantes soluções propostas estão, como será visto mais adiante, aquelas desenvolvidas por Newton, Amontons, Fahrenheit e Reaumur. Essa persistência na busca de formas de aperfeiçoar as medições da temperatura corresponderia ao crescimento de uma corrente de pensamento sensualista, que viria a desenvolver-se no século XVIII em substituição ao aristotelismo motivando as pesquisas sobre a determinação de escalas de intensidades das qualidades sensíveis. Para compreendermos tais tentativas de solução, é preciso, no entanto, que acompanhemos as idas e vindas que levaram às mesmas.

Próximo texto desta série: Os Trabalhos da Accademia del Cimento.
PARA CITAR ESTA FONTE: Medeiros, Alexandre. Problemas com os Primeiros Termoscópios. Física e Astronomia_Alexandre Medeiros, BLOG.

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