Revista BOLEMA (Ano 7, N.8, 1992)
Números Negativos: Uma História de Incertezas
Alexandre Medeiros (UFRPE) & Cleide Farias de Medeiros (UFRPE)
I. O Uso da História da Matemática na Educação Matemática
Muitos são os papéis que se poderiam atribuir ao uso da História da Matemática na Educação Matemática. Vários pesquisadores se têm dedicado a esta questão (Freudhental, 1981; Pimm, 1982; Arcavi, 1983; Katz, 1986; Gattan-Guiness, 1987; para citar alguns). Estes papéis têm variado desde o comumente assumido aspecto motivador de tal uso a outros mais complexos como a necessidade de explicitar a admissão cultural da Matemática (Wilder, 1972; Struik, 1989).
Contrariamente às crenças de antigos historiadores da Matemática, como E.T. Bell, que defendia o ponto de vista de que “na Matemática nós contemplamos verdades divinas que existiram e existirão para sempre” (Bell, 1931), matemáticos como Raymond Wilder têm destacado que “a matemática é algo criado pelo homem e o tipo de matemática que ele desenvolve é uma função das necessidades culturais do seu tempo assim como quaisquer dos seus outros mecanismos de adaptação” (Wilder, 1974).
Esta dimensão cultural está ligada a um outro papel recentemente atribuído à história da Matemática: o de subverter a imagem de certeza a-histórica do conhecimento matemático. Dito de outro modo, o papel de colocar em xeque a imagem de que as verdades matemáticas são eternas, de que um teorema matemático uma vez provado estaria estabelecido para sempre, de que padrões de rigor adotados na Matemática seriam imutáveis e de que a Matemática progride de forma cumulativa e sem contradições. Um importante referencial teórico no combate a tais concepções tem sido, sem dúvida, a obra de Lakatos (1976), centrada no polêmico desenvolvimento histórico do teorema de Euler para os poliedros regulares. Sérias críticas à concepção linear do desenvolvimento matemático foram feitas também por Michael Crowe e Morris Kline. Crowe, por exemplo, apontou para o fato de que em Matemática “a ideia de certeza é mais ilusória do que usualmente é assumido” (Crowe, 1985) enquanto Kline foi incisivo ao dizer que “a esperança de encontrar leis objetivas e infalíveis desapareceu: A Idade da Razão Acabou” (Kline, 1982). Partindo das ideias de Lakatos: autores com Reuben e Hersh (1988) têm igualmente destacado as idas e vindas na história da Matemática, assinalando a provisoriedade das demonstrações e a historicidade das ideias de certeza e rigor, caracterizadas por uma constante luta entre exemplos e contra-exemplos.
Não é intenção deste artigo fazer um apanhado de todas as tendências apontadas na literatura para o uso da história da Matemática em seu ensino. O propósito aqui é bem menos abrangente embora não menos ousado. Trata-se tão somente de desenvolver, através de um estudo de caso, um exemplo de como a história da Matemática pode fornecer indicações para se questionar a tão difundida visão de progresso linear da Matemática, isento de incertezas e contradições. A discussão de tais temas, polêmicos por excelência, é algo que demanda a apresentação de exemplos históricos para enriquecer o debate. No presente artigo, um pouco da história dos números negativos é colocado em perspectiva, de modo a iluminar a questão em foco.
II. A Difícil Aceitação Histórica dos Números Negativos
A origem histórica dos números negativos é incerta. Eles já aparecem na obra chinesa “Nove Capítulos sobre a Arte Matemática”, cerca de 200 a. C. devida provavelmente a Chang Tsang (Hollingdale, 1989). Não se tem, no entanto, clareza do quanto tais idéias encontraram ou não aceitação entre os próprios chineses. Pouco se sabe, igualmente, se tal conhecimento chegou a fluir para outros locais onde viria mais tarde a aparecer. A história da ciência chinesa é um capítulo que só recentemente começou a ser devidamente investigado (Needham, 1981).
Entre os gregos, as regras dos sinais aparecem implícitas na obra do último dos seus grandes matemáticos, Diofanto de Alexandria (c. 250 d. C.), como uma consequência da tentativa de abreviar os cálculos, mas a sua existência independente não parece Ter sido claramente reconhecida (Hogben, 1949).
O início dos estudos algébricos traz inevitavelmente consigo o problema dos negativos, pois equações como ax + b = 0 onde a e b são maiores que zero, têm sempre uma raiz negativa. Essas, porém, foram consideradas falsas raízes. Apesar dos trabalhos de Diofanto serem um dos marcos iniciais da Álgebra, os gregos, no entanto, “para quem a geometria era um prazer e a álgebra um demônio necessário, rejeitaram os números negativos. Incapazes de ajustá-los em sua geometria, incapazes de representá-los por figuras, os gregos consideraram os negativos não exatamente como números” (Kasner & Newman, 1968).
Os hindus (séc. VI) aplicaram o princípio de valor-lugar do sistema sexagesimal babilônico para a base 10 e dotaram o símbolo babilônico de separação, usado na escrita dos números, do significado de um verdadeiro número, criando com isso o conceito do zero, símbolo da casa vazia. Embora influenciados pela Álgebra de Diofanto, os hindus, diferentemente dos gregos, fizeram uso dos números negativos, atribuindo-lhes o significado de um débito. “Na verdade, eles formularam as operações aritméticas sobre os números negativos com esta aplicação em mente” (Kline, 1987).
Os negativos, no entanto, não foram aceitos por todos os hindus. O famoso Bhaskara , por exemplo, maior matemático hindu do século XII, resolveu a equação x2 - 45x = 250, encontrando as soluções x = 50 e x = - 5, mas mostrou-se cético quanto à validade da raiz negativa (Struik, 1989). Para ele, “o segundo valor não devia ser tomado por ser inadequado, pois as pessoas não aceitam raízes negativas” (Reid, 1960). Contudo, os negativos foram usados crescentemente após serem introduzidos. Apesar deste uso, ditado por raízes práticas, o significado dos negativos enquanto verdadeiros números, sua aceitação como boa matemática, estava longe de se concretizar. “Foi apenas a partir do século XVII, que os matemáticos começaram a reconhecer os números negativos como números ‘válidos’” (Wilder, 1984) e ainda no início do século XIX havia matemáticos que não lhes atribuíam uma real existência (Flegg, 1984).
A polêmica sobre a visualização dos negativos como verdadeiros números estava presa ao critério vigente de aceitação de novas ideias como boa matemática. Tal critério, de tradição grega, exigia para os negativos uma representação geométrica como a dos positivos de contagens ou medições. Exigia-se um modelo concreto do qual a nova ideia pudesse se constituir numa metáfora. A visão dos negativos com débitos, apesar de útil, parecia insatisfatória e não preenchia o requisito matemático da necessidade da metáfora. “Embora compreensíveis como símbolos no papel, desafiavam diagramas, gravuras, ou metáforas adequadas para explicá-los em termos da experiência comum” (Kasner e Newman, ibid). As dificuldades eram ainda maiores quando se tentava visualizar as regras dos sinais nos termos geométricos exigidos.
Os negativos, assim como outras contribuições dos hindus, foram passadas aos árabes que as transmitiram posteriormente aos europeus. Tradutores da matemática grega, os árabes tiveram contato com a ainda que limitada notação algébrica de Diofanto e dos hindus. No entanto, longe de darem sequência a esta simbolização, retornaram à complicada representação das equações em termos de palavras, usando uma notação sincopada. Eles igualmente não deram continuidade ao uso dos negativos iniciado pelos hindus (Flegg, ibid).
Mesmo a simples difusão do uso dos negativos não se deu de forma tranqüila e imediata. “Desde que ninguém havia visto até então menos três vacas, [...] não foi sem grande esforço que esta ideia, hoje lugar-comum, foi introduzida na matemática” (Kasner e Newman, Ibid). O fato de tirar, por exemplo, 7 de 5 tinha um certo aspecto mágico. Para tornar o uso dessa mágica amplamente aceitável “foi necessário esperar o surgimento de um sistema bancário com uma estrutura de crédito internacional , tal o que veio a aparecer nas cidades do norte da Itália (particularmente Florença e Veneza) durante o século XIV. A aparentemente absurda subtração 7 menos 5 tornou-se possível quando novos banqueiros começaram a permitir aos seus clientes sacar 7 ducados de ouro enquanto seus depósitos eram apenas 5” (Singh,1972).
O uso crescente dos negativos não deve ser confundido, porém, com a sua aceitação como boa Matemática, a qual se mostrou difícil e controvertida. No entanto, a adoção de novas ideias na Matemática não foi sempre ditada necessariamente por sua compreensão. Como assinala Wilder: “a admissão e aceitação de um conceito será decidido pelo seu grau de fertilidade. Em particular, um conceito não será sempre rejeitado devido à sua origem ou sobre as bases de critérios metafísicos tais como ‘irrealidade’ [...] Um bom exemplo é a aceitação dos números negativos no corpo da matemática [...] Na medida em que estes números não eram indispensáveis, eles foram rejeitados sob a alegação de serem ‘irreais’ ou ‘fictícios’” (Wilder, ibid). Embora os negativos se tenham tornado crescentemente aceitos em termos de uso, as controvérsias sobre a sua natureza permaneceram acesas até o século XIX.
Nicolas Chuquet (séc. XV) e Michael Stiffel (séc. XVI), por exemplo, chamavam os negativos de ‘números absurdos’. A maior parte dos matemáticos dos séculos XVI e XVII, igualmente, não aceitava os números negativos como mais que meros símbolos; e aqueles que os aceitavam não os admitiam como raízes de equações.
Cardan, outro eminente matemático do século XVI, embora conhecesse a verdadeira importância das raízes negativas, intitulava-as de ‘fictícias’ (Kasner e Newman, ibid). Em sua ‘Ars Magna’, ele dividiu os números em ‘números verdadeiros’ (os números reais de sua época: os naturais, as frações positivas e alguns irracionais) e ‘números fictícios’ e ‘falsos’, correspondendo estes dois últimos aos negativos e suas raízes quadradas (Wilder, ibid).
Viète (1540-1603), um dos introdutores dos símbolos +, - e =, assim como o primeiro talvez a empregar coeficientes literais nas equações, descartou completamente os negativos como possíveis de serem representados por tais coeficientes. O símbolo -, por outro lado, referia-se apenas à operação de subtração entre números verdadeiros, não carregando o duplo significado, que posteriormente viria a ser adotado, de número e operação e que muitas pessoas, por estarem hoje acostumadas, tomam por natural. Para Viète, os números negativos eram desprovidos do significado intuitivo e físico que os negativos possuíam. Foi só a partir dos trabalhos de John Hudde (1657) que os matemáticos começaram a adotar mais frequentemente os coeficientes literais nas equações como representando números positivos ou negativos (Kline, ibid ).
Mesmo Descartes (1596-1650), criador da Geometria Analítica e Fermat (1601-1655) não aceitaram os números negativos, deixando desse modo de explorar todo o seu poder de abordagem para a Geometria. A introdução dos negativos nas representações coordenadas é obra de seus sucessores. Descartes tomou as raízes negativas como ‘falsas’, sob a alegação de serem ‘menores que nada’ e desenvolveu a transformação das raízes negativas em positivas. Ainda assim, nunca ficou em paz com os negativos.
Mesmo após a representação dos negativos como pontos de uma reta orientada, a polêmica sobre a aceitação dos negativos continuou com pleno vigor. Em particular, a dificuldade em construir metáforas para as regras dos sinais continuava a jogar um papel decisivo. Pascal (1623-1662) tomou a subtração 0 – 4 como puro ‘nonsense’. Em seus ‘Pensamentos’ afirmou categoricamente: “eu conheci aqueles que não podiam compreender que tirar quatro dá zero” (Pascal, Apud Kline, ibid).
Outros, como Arnaud (1612-1694), matemático amigo de Pascal, questionou que – 1 : 1 = 1 : - 1, pois, “- 1 é menor do que + 1; daí, como poderia um menor estar para maior assim como um maior está para um menor?” (Arnauld apud Kline, ibid).
Leibniz (1646-1716), embora visse esta mesma objeção, afirmou que se poderia calcular com tais proporções, uma vez que ‘formalmente’ isto equivalia a calcular com quantidades imaginárias que já àquela época tinham sido introduzidas. Leibniz, com isso, nada mais fez que condicionar a validade das operações com os negativos, até então obscuras, à validade das operações com os imaginários, igualmente não compreendidas. No entanto, a sua referência à ‘forma das operações’ já carrega um germe do novo ponto de vista de adoção dos negativos que se desenvolveria a partir do século XIX.
Bombelli (séc. XVI) havia sido mais prático, fornecendo claras definições para os negativos, explicitando as regras dos sinais. Na ausência de uma fundamentação estrutural, até mesmo para os positivos, tomou a regra (-) x (-) = (+) sem discussão. Outros foram mais longe em mostrar insatisfação com os negativos.
Thomas Harriot (1560-1621), por exemplo, além de não praticar as raízes negativas, pensou ter provado a impossibilidade de tais raízes em seu ‘Artes Analíticas Aplicadas’ (1631). Enquanto isso, Stevin (1548 – 1620) usava os coeficientes negativos nas equações e aceitava as raízes negativas.
Apesar de Harriot e Stevin terem vivido na mesma época, adotaram atitudes opostas diante dos negativos. O sinal ‘menos’ foi adotado por Girard (1595-1632) e por Harriot tanto para a operação de subtração quanto para os números negativos, “embora símbolos separados devessem ter sido usados porque um número negativo é um conceito independente enquanto a subtração é uma operação” (Kline, ibid.)
Ainda no século XVIII, os matemáticos buscavam compreender e justificar os seus trabalhos com os irracionais, os negativos, complexos e com a Álgebra. Devido à falta de um significado geométrico e à estranheza de suas regras de operação, os negativos constituíam-se em uma dificuldade maior que a dos irracionais. Na falta de fundamentação lógica adequada havia uma disputa entre aqueles que tentavam alinhavar uma justificativa e os que simplesmente não os aceitavam.
Na linha de frente dos que combatiam o uso dos negativos, encontrava-se D’Alembert (1717-1783) afirmando que “um problema conduzindo a uma solução negativa significa que alguma parte da hipótese era falsa e foi assumida verdadeira [...] chegar a uma solução negativa significa que o oposto do número (o positivo correspondente) é a solução desejada” (D’Alembert, Apud Kline, ibid).
Enquanto isso, Leonhard Euler (1707-1783), talvez o maior matemático do século XVIII, na falta de uma fundamentação lógica, tentava remendar uma justificativa para o uso dos negativos. “Euler enveredou por um argumento totalmente não convincente para mostrar que (-1) (-1) ‘deve’ ser igual a +1. Pois, como ele raciocinou, deve ser +1 ou –1, e não pode ser –1 = (+1) (-1) desde que (-1) = (+1) (-1)” (Courant e Robins, Ibid). Euler fixou-se na antiga metáfora não geométrica hindu para explicar a operação de subtrair – b como sendo o mesmo que somar b, visto que, segundo ele, “cancelar um débito significa o mesmo que dar um presente”(Euler, Apud Kline, ibid).
No início do século XIX, a Matemática era já utilizada com grande sucesso para modelar explicações dos fenômenos físicos. No entanto, a falta de uma fundamentação lógica permanecia e não se tinha qualquer garantia de que tal Matemática estivesse correta. Os negativos, em particular, como nos séculos anteriores, continuavam a se constituírem em um ponto de atrito ente os matemáticos.
William Frende (1757-1841), matemático e sogro de Augustus De Morgan, expressou em seus ‘Princípios de Álgebra’: “um número se presta a ser subtraído de um número maior do que ele mesmo, mas tentar subtraí-lo de um número menor do que ele mesmo é ridículo. Mas isto é tentado por algebristas que falam de um número menor do que nada, de multiplicar um número negativo por outro negativo e assim produzir um número positivo” (Frende, Apud Kline, ibid).
Nesta mesma direção colocou-se Lazare Carnot (1753-1823) ao tomar a noção de algo maior do que nada como absurda e admitir a introdução dos negativos na Álgebra apenas como entidades fictícias úteis nos cálculos. O próprio De Morgan (1806-1871), retomando o ponto de vista de D’Alembert afirmou que “quando a resposta para um problema é negativa, trocando-se o sinal de x na equação que produziu aquele resultado nós podemos ou descobrir um erro no método de formação daquela equação ou mostrar que a questão do problema é por demais limitada e pode ser estendida de modo a admitir uma resposta satisfatória” (De Morgan, Apud Kline, ibid).
Ainda, em 1837, William Hamilton (1805-1865) expressava suas reservas em relação aos negativos ao dizer que “não se requer nenhum peculiar ceticismo para duvidar, ou mesmo desacreditar, a doutrina dos negativos [...] que uma quantidade maior possa ser subtraída de uma menor, e que o resultado seja menor do que nada; que dois números negativos, ou números denotando quantidades menores que nada, possam ser multiplicados entre si, e que o produto seja um número positivo” (Hamilton Apud Kline, ibid).
A superação dessa polêmica exigiria uma mudança total nos critérios de aceitação dos negativos, com o abandono da necessidade da metáfora e a adoção de novos critérios baseados na estruturação dos negativos enquanto um sistema numérico. Isso viria a se constituir numa mudança radical de ponto de vista, numa autêntica revolução que só viria a se operar em pleno decorrer do século XIX com a fundamentação dos números.
O ponto de inflexão para tal mudança encontra-se nos trabalhos originais de George Peacock (1791-1858) e na distinção por ele traçada entre Álgebra aritmética e Álgebra simbólica. Na primeira, apenas as operações com os inteiros positivos seriam permitidas; na segunda, tal restrição era removida embora fossem ainda adotadas as regras da Álgebra aritmética. Isso ficou configurado no seu princípio da permanência das formas equivalentes o qual estabelecia que as leis fundamentais dos velhos números da Aritmética seriam preservadas para os novos números (Reid, Ibid ; Hollingdale, ibid). Dentre tais leis, as principais, tomadas como axiomas na Álgebra clássica, podem ser expressas como:
1) a + b = b + a
2) (a + b) + c = a + ( b + c)
3) ab = ba
4) (ab)c = a (bc)
5) a (b+c) = ab + ac
“Para incluir os novos símbolos –1, -2, -3, ... em uma aritmética ampliada a qual englobe tanto os inteiros positivos como os negativos nós devemos, certamente, definir operações com eles de um modo tal que as regras originais das operações aritméticas sejam preservadas. Por exemplo, a regra
(- 1) (-1) = 1
a qual estabelecemos para governar a multiplicação de inteiros negativos, é uma conseqüência do nosso desejo de preservar a lei distributiva a (b + c) = ab + ac. Pois se nós tivéssemos estabelecido que (-1) (-1) = -1, então, fazendo a = -1, b = 1, c = - 1, nós deveríamos ter tido –1 (1 – 1) = -1 –1 = - 2, enquanto que por outro lado nós realmente temos - 1 ( 1 – 1 ) = -1 x 0 = 0. Levou muito tempo para que os matemáticos percebessem que a ‘regra dos sinais’ junto com todas as outras definições governando os inteiros negativos e frações não podem ser ‘provadas’. Ela são criadas por nós com o objetivo de obter liberdade de operação ao mesmo tempo que preservando as leis fundamentais da aritmética. O que pode - e deve ser – provado é apenas que com base nestas definições as leis comutativa, associativa e distributiva da aritmética são preservadas” (Courant e Robbins, ibid).
É esta mudança radical no que exigir como critério de aceitação dos negativos que estabelece a diferença marcante entre a atitude dos matemáticos antes e depois da fundamentação da Matemática. O novo ponto de vista adotado rompeu com uma longa tradição clássica segundo a qual os negativos, apesar de largamente usados em questões práticas, eram não mais que meros símbolos. Estabelece, então, um corte na busca da metáfora (enquanto uma correspondência analógica com o mundo real) e coloca a questão da forma e da estrutura lógica como um novo ideal matemático a ser perseguido. Este novo critério, porém, é a expressão de uma interpretação vencedora e não escapa de toda a polêmica em torno dos fundamentos da Matemática que avança pelo século XX e cuja análise, ainda que superficial, ultrapassa as pretensões deste presente artigo.
III. Algumas Considerações Pedagógicas
Que lição pedagógica pode ser tirada de uma tal história de incertezas?
São muitos os aspectos importantes que, ao que nos parece, podem ser aprendidos da história dos números negativos, dentre os quais listamos alguns a seguir.
Em primeiro lugar, perceber que ela é muito útil para ressaltar a dimensão humana subjacente à produção da Matemática, despindo-a da auréola de eterna concordância entre seus praticantes; segundo, perceber que o homem aceitou usar os números negativos antes de compreendê-los como números em si, tal como ocorria com os números naturais; terceiro, ter claro que a fundamentação desse tópico é uma conquista tardia e não trivial, tal como se deu com a Geometria Analítica e o Cálculo, cujos usos antecederam suas fundamentações; quarto, que há um grande prejuízo pedagógico em se superenfatizar, no ensino, o caráter dedutivo-postulacional da Matemática; pois, o elemento de invenção construtiva permanece como o núcleo de qualquer aquisição matemática, mesmo nos campos mais abstratos (Courant e Robbins, ibid).
Finalmente, mais importante, ainda, é atentarmos para o fato de que o aspecto intuitivo e o aspecto formal não caminham lado a lado. Na Matemática, tal como na Ciência em geral, há o momento histórico dos processos de criação, descoberta ou invenção do conhecimento, mas há também o momento de produção dos discursos das justificativas. É preciso não menosprezar essa dimensão intuitiva que faz as pessoas usarem conceitos cuja fundamentação lógica ainda não está para elas disponível. Acima de tudo, é preciso garantir que a Matemática “não é uma atividade realizada por um computador no vácuo. É uma atividade humana realizada à luz de séculos de experiência humana, usando o cérebro humano, com todas as potencialidades e deficiências que isto implica” (Stewart e Tall, 1987).
As consequências de tal postura, na qual a história seja um componente essencial, convidam o professor a enfocar o erro dos estudantes na resolução de problemas de um ponto de vista alternativo. Visto numa perspectiva histórica e humanista, não parece sensato exigirmos precocemente dos alunos aquilo que um Euler não vislumbrou em sua fase produtiva.
Certamente, não devemos incorrer no exagero irrealístico de propormos o ensino da Matemática em moldes exclusivamente históricos ou tampouco cairmos no reducionismo de pensarmos que o desenvolvimento cognitivo humano repete o desenvolvimento histórico da produção das ideias científicas ou matemáticas. Poderíamos, entretanto, admitir que se a história da Matemática não nos oferece nenhum caminho seguro, nenhuma receita pronta de como o ensino da Matemática deveria ser feito, ao menos afasta-nos do exagerado otimismo de posturas que a ignoram.
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