quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Os Primórdios da Ideia de Temperatura

Alexandre Medeiros (PhD, University of Leeds – Professor de Física e Astronomia, UFRPE)

Tópicos História da Física

Os Primórdios da Ideia de Temperatura

As ideias intuitivas de quente e frio são muito antigas, assim como o conhecimento igualmente intuitivo, do equilíbrio térmico: a ideia de que quando um corpo quente entra em contato com um corpo frio, o primeiro sofre um resfriamento e o segundo um aquecimento. Tal processo de mudança, ao completar-se, dá origem à ideia de que um certo equilíbrio teria sido atingido.
Mas equilíbrio de que?
Sem uma distinção clara entre os conceitos de calor e temperatura, distinção esta que só viria começar a se construir na metade do século XVIII, foi impossível, por muito tempo, dar uma resposta clara a esta questão. A ideia, até então vigente, era a de que os corpos em equilíbrio térmico possuiriam as mesmas quantidades de calor, ou os mesmos graus de calor. As noções de quantidades de calor e graus de calor eram vistas, deste modo, praticamente, como sinônimos. A questão era de difícil solução na medida em que não havia nenhum modo conhecido de medir quantidades de calor, ou o que não parecia até então muito diferente, de medir as temperaturas dos corpos.
Foi o desenvolvimento de processos e instrumentos de medição da temperatura, ao longo do século XVII e da primeira metade do século XVIII, que veio a possibilitar as condições para que as ideias de temperatura e calor viessem a ter conceituações mais nítidas e distintas uma da outra.
Na Física de Aristóteles (384-322 AC), a palavra temperatura aparecia com a conceituação de um temperamento ou estado assumido pelos corpos, dado pelo grau da mistura de qualidades opostas: o quente e o frio.

Galeno (129-200), médico grego, seguindo o raciocínio aristotélico, propôs a existência de quatro graus de temperatura a partir de um ponto neutro obtido pela mistura de quantidades iguais de gelo e água fervente.
Galeno admitia ainda que cada indivíduo possuía uma temperatura própria que era alterada quando doente. Os remédios que traziam a cura deveriam, assim, restabelecer o temperamento ideal do corpo e assim sendo o grau apropriado de calor ou de frio. Na verdade, escalas qualitativas de temperatura, semelhantes às de Galeno, envolvendo referências às estações do ano, como o mais quente verão e o mais frio inverno, existiram, de há muito, entre povos das mais variadas regiões do planeta.

Nada disso, porém, assemelhava-se à possibilidade de ao menos imaginar-se a temperatura como algo que pudesse realmente vir a ser medido.
A história das medições da temperatura, ou seja, da termometria, não é algo que tenha ocorrido sem problemas. Ela se desenvolveu como uma consequência de uma reflexão humana sobre certos fenômenos do cotidiano. Não é novo, por exemplo, o conhecimento empírico de que os corpos sofrem diversos tipos de mudanças com os aquecimentos e os resfriamentos dos mesmos. A dilatação térmica é talvez a mais notável de tais mudanças. É da observação diária a constatação de que a maioria dos corpos aumenta de volume ao serem aquecidos. Esse conhecimento empírico, no entanto, não dá conta, por si só, de responder à questão básica de como avaliar com precisão uma temperatura.


John Locke (1632-1704), filósofo inglês, contemporâneo de Newton, idealizou, em 1690, um experimento que viria a tornar-se famoso entre os professores de física. Tal experimento ilustra bem a dificuldade que podemos encontrar para avaliarmos as temperaturas dos corpos. Locke propôs a seguinte situação: coloquemos uma mão num vaso com água quente e a outra mão num vaso com água fria. Em seguida coloquemos as duas mãos num terceiro vaso com água morna.
Como avaliaremos a temperatura deste terceiro vaso?
A mão que veio do vaso quente dar-nos-á uma sensação de frio enquanto a outra mão vinda do vaso frio dar-nos-á uma sensação oposta. Tal experimento parece mostrar-nos a necessidade de avaliarmos de uma forma mais precisa as temperaturas dos corpos, forma esta que não dependa apenas dos nossos sentidos.
Poderíamos mesmo conjecturar sobre a possibilidade de medirmos a temperatura, mas como seria possível medirmos uma temperatura?
A resposta a esta questão pode, atualmente, parecer-nos óbvia: com um termômetro! Mas imaginemo-nos numa época em que os termômetros ainda não existissem.
Quais as dificuldades que poderíamos encontrar para que, ao menos, pudéssemos conceber uma tal possibilidade?
Estamos, nos dias atuais, tão habituados a medir temperaturas, com o uso corriqueiro de termômetros, que não nos damos conta da complexidade teórico-prática envolvida nesse ato de medição. Tomamos, equivocadamente, como algo conhecido muitas coisas às quais apenas nos habituamos, sem reflexão, a fazer. Em outras palavras, tomamos como naturais coisas que são apenas tradicionais, pois a tradição acostuma-nos com uma forma de pensar e leva-nos a não refletirmos sobre as origens do conhecimento.
Eis, portanto, um contributo que a história pode oferecer à aprendizagem da ciência: resgatar as origens das ideias, substituindo um discurso dogmático por uma aprendizagem fundamentada na compreensão das dificuldades envolvidas no processo construtivo das ideias.
Assim sendo, retomemos a questão das dificuldades teóricas encontradas na simples concepção da possibilidade de medirmos a temperatura.
Qual é, afinal, a essência do problema?
 O problema fundamental é que a temperatura não é uma grandeza como a distância, que se preste a medições diretas. A temperatura só pode ser avaliada admitindo-se a existência de uma dependência matemática, de uma função, para falar em termos mais modernos, entre as mudanças de temperaturas e outras propriedades dos corpos, tais como o volume ou a pressão. O simples fato de alguém perceber que variações na temperatura de um corpo são sempre acompanhadas por variações em outras propriedades desse mesmo corpo, não implica no reconhecimento de que exista uma dependência do tipo funcional entre essas duas coisas. Não é absolutamente óbvio que possamos associar a cada temperatura diferente um número diferente e que cada valor desta temperatura tenha associado um e apenas um valor da outra grandeza física cuja variação estejamos observando, como o comprimento de uma coluna líquida, por exemplo. Isto  é parte de uma construção mental na história da física que veio a revelar-se muito frutífera, e à qual estamos certamente bastante habituados, mas que está longe de ser óbvia. Menos óbvio ainda é que tipo de função, se tal existir, deva ser esta relação identificada.
À primeira vista, poder-se-ia pensar na obviedade da existência de uma função linear, mas esta função serve apenas como uma primeira aproximação do fenômeno em estudo. Não possuímos nenhuma garantia inicial de que esta função, se ao menos existir, deva ser necessariamente uma função linear.
A invenção do termômetro, portanto, requer da parte do seu criador uma postura de admitir, ainda que sem garantias iniciais, ou seja, tacitamente, um pressuposto teórico fundamental: a existência de uma dependência simples entre a temperatura e uma outra grandeza mais diretamente mensurável.
Apenas deste modo, as observações feitas com o termômetro poderão ser interpretadas como indicativas das temperaturas do instrumento. A leitura do comprimento de uma coluna de mercúrio, por exemplo, só pode ganhar o significado de um valor da temperatura caso tais observações do instrumento estejam sendo feitas por alguém que previamente admita, ainda que tacitamente, a existência da função acima discutida. Sem esse pressuposto teórico, consciente ou não, a leitura de um termômetro de mercúrio, por exemplo, forneceria apenas os valores dos comprimentos assumidos pela coluna do líquido e não o valor das temperaturas do instrumento.
É nesse sentido que se poderia afirmar que as observações feitas com um termômetro estão carregadas de teoria, pois contêm pressupostos fundamentais sobre a realidade a ser estudada que conferem um novo significado às leituras efetuadas. Desse modo, a realidade percebida através das leituras de um termômetro tem uma dimensão teórica implícita que faz com que esta realidade assim percebida possa ser dita como tendo sido uma realidade construída pelo observador e não apenas uma realidade observada de forma direta.
Esse, no entanto, não é o único aspecto problemático da invenção do termômetro. Observe o leitor que dissemos acima que a leitura do termômetro fornecia a temperatura daquele instrumento. Não afirmamos que a leitura de tal instrumento fornecia a temperatura do ambiente como, por exemplo, a de um líquido no qual estivesse imerso. Isso pode parecer estranho, pois afinal o termômetro é usado habitualmente para determinar não a sua própria temperatura, mas a temperatura de outros corpos. Quando um médico coloca um termômetro num paciente, ele não diz que a temperatura do termômetro é de, por exemplo, 38o C. Ele afirma que a temperatura do paciente é 38o C.
O que lhe dá o direito de fazer esta afirmação?
Afinal, mesmo assumindo, como dissemos antes, a existência de uma função entre os comprimentos da coluna de mercúrio e da temperatura, o que estaria sendo admitido seria a dependência entre as propriedades de um mesmo corpo, no caso o termômetro. Assim sendo, o que o termômetro forneceria, mesmo já se levando em conta o pressuposto acima discutido, seria apenas a sua própria temperatura e não a do ambiente no qual estivesse inserido.
Como, no entanto, dizemos habitualmente que um termômetro indica a temperatura do ambiente?
Para que possamos afirmar que a temperatura lida no instrumento é a do ambiente, deveremos estar fazendo, na verdade, conscientes ou não, outro pressuposto teórico. Estaremos assumindo, por exemplo, implicitamente que quando dois corpos, não em mudança de fases, estiverem em contato um com o outro, e um deles não estiver mais variando a sua temperatura, o outro também não deverá estar. Esta aparente obviedade está, na verdade, apoiada na existência de um esquema conceitual oculto que nos diz, por exemplo, que algo passa entre dois corpos em contato que estejam a temperaturas diferentes e que este algo, que aqui chamaremos simplesmente de calor, sem discutirmos ainda o que tal palavra possa significar, só deixa de passar entre os corpos quando suas temperaturas tornam-se iguais. Não importa que os conceitos de calor e temperatura não estejam precisos, que não se tenha dito se o calor é um fluido, um movimento de partículas ou outra coisa qualquer.
Não importa também se as próprias ideias de calor e temperatura não estejam ainda bem distintas uma da outra. Mesmo assim, o nosso esquema conceitual, implícito, indica que quando um dos corpos em contato  deixar de variar a sua temperatura, isto será um sinal de que aquele algo, a que chamamos de calor, terá deixado igualmente de ser recebido ou cedido pelo referido corpo e desta forma terá deixado igualmente de ser cedido ou recebido pelo outro que assim também não teria como variar sua temperatura. A ideia, portanto, que as temperaturas sejam iguais corresponde igualmente a uma construção mental. Essa construção é o que define a situação que denominamos de equilíbrio térmico.
Mais complexa ainda é a situação na qual usamos um termômetro para comparar as temperaturas de dois corpos distintos e isolados um do outro. Quando o termômetro mostra-se separadamente em equilíbrio térmico com os dois dizemos, mesmo sem termos feito o contato direto entre aqueles dois corpos, que eles estão a uma mesma temperatura. Admitimos isso, implicitamente, todas as vezes que comparamos, com o auxílio de um termômetro, as temperaturas de dois corpos. Isso equivale a dizer que dois corpos em equilíbrio térmico com um terceiro, no caso o termômetro, têm a mesma temperatura.  Em termos matemáticos, isso equivale a estarmos aplicando a propriedade transitiva aos valores das temperaturas. Tal premissa recebe o nome de lei zero da termodinâmica e sua afirmação explícita corresponde a um nível de reflexão sobre o que está implícito no uso do termômetro.


Para que se perceba a não obviedade desta ideia, seria interessante salientar que a sua clara explicitação, feita por Joseph Black (1728-1797) médico e químico escocês, na metade do século XVIII, só veio a ocorrer após mais de cento e cinquenta anos de desenvolvimento do termômetro. Físicos tão importantes como Galileu, Newton e Boyle, dentre outros, utilizaram, sem dúvida,  tacitamente, um tal conhecimento, sem se darem conta da enorme importância da sua explicitação.
Como afirmou Max Planck, um dos maiores físicos do século XX, "o fato de que dois corpos independentes em equilíbrio térmico com um terceiro corpo, encontrem-se também em equilíbrio térmico entre si, não se constitui num fenômeno evidente por si mesmo, mas sim num problema muito importante e significativo".
Há vários tipos, portanto, de reflexões a respeito do termômetro e do seu funcionamento que se revelaram historicamente necessárias para o desenvolvimento desse instrumento. Tais reflexões transcenderam o mero conhecimento intuitivo e exigiram assim uma atitude teorizadora aliada a uma postura experimental, cujo início  não se deu antes do final do século XVI. A história da termometria é, assim, em boa parte, a história da busca de respostas para questões desse tipo.
Como surgiram, no entanto, tais indagações?
É preciso recuar um pouco no tempo para buscarmos uma possível resposta e seguir uma sequência histórica que nos permita aquilatar o grau das dificuldades enfrentadas e a engenhosidade das soluções propostas. Esta é, portanto, uma história que ainda continua em outros textos que se seguem. A seguir, nesta série: Os Primeiros Termoscópios.

PARA CITAR ESTA FONTE: Medeiros, Alexandre. Os Primórdios da Ideia de Temperatura. BLOG Física e Astronomia_Alexandre Medeiros, BLOG.
http://alexandremedeirosfisicaastronomia.blogspot.com/2011/10/os-primordios-da-ideia-de-temperatura.html. Acessado em 19 de Outubro de 2011. (atualizar a data).

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