terça-feira, 18 de outubro de 2011

A Grandeza de Einstein e a Pressa de Alguns Professores

Alexandre Medeiros

“CAUSOS” DE PROFESSORES


A Grandeza de Einstein e a Pressa de Alguns Professores




Sendo eu professor de História da Física, já tive a oportunidade de dar várias palestras sobre Einstein, sua vida e a sua obra e o eixo central das mesmas tem naturalmente variado de acordo com o público que as assistem. Quando se trata de uma palestra, por exemplo, para professores de Física ou para pessoas que tenham tido algum tipo de treinamento prévio nesta matéria, já é possível antever algumas das perguntas que certamente surgirão, dentre elas algo inevitavelmente relacionado ao paradoxo dos gêmeos ou coisas assim. Quando se trata, entretanto, de um público mais amplo e leigo, as perguntas surgidas podem por vezes nos surpreender. Recentemente, fui convidado para dar uma dessas tais palestras para um público de adolescentes, de estudantes de nível médio. Lá chegando, e antes mesmo de iniciar a palestra, um professor ainda bem jovem de outra disciplina me perguntou logo de chofre:


Antes que o senhor comece a sua palestra, diga-me, em rápidas palavras, porque eu devo assistir essa palestra. Eu não sou da área e sou um cara muito prático. Quero saber exatamente o que é que esse tal de Einstein fez de útil e para que serve hoje em dia essas coisas que ele descobriu.

Eu olhei lentamente para o rapaz e lhe disse:

Antes de lhe responder essa sua pergunta, por favor, me diga, por que você, assim tão jovem, tem tanta pressa? Se você já fosse um velho, com o seu tempo contado, talvez essa sua pressa fizesse algum sentido para mim, mas não parece ser esse o caso, não é mesmo?

O rapaz olhou-me um tanto surpreso com a minha insolência, sorriu de forma matreira e me disse:

É que tempo é ouro, o senhor sabe! Não podemos, hoje em dia, gastar o nosso tempo com coisas que não valham a pena, que não tenham utilidade.

Tudo bem! (respondi eu). Tudo bem! Digamos que eu esteja de acordo com você. Apenas digamos; mas, ainda assim nós temos aqui um problema. Como você sabe, logo de início, sem haver ainda vivenciado as coisas, o que é que vale à pena ser vivenciado? Essa, não me parece uma questão fácil de ser respondida.

Mas, é por isso mesmo que eu estou lhe perguntando, porque o senhor deve saber a resposta. Deve saber o que é que o Einstein inventou de útil para pessoas como eu.

– Para pessoas práticas e objetivas como você que não têm tempo a perder?

– Isso!

Mas, como assim? (Perguntei, eu). O que você espera que alguém possa ter criado para que você ache que possa gastar alguns minutos do seu precioso tempo ouvindo um pouco da história desse tal indivíduo?

– Sei lá! Algo útil, como um avião, um aparelho eletrônico, assim como um DVD, sei lá. Algo assim.

– Serviria se ele houvesse inventado algo como uma escova de dentes automática?

Como, assim? Eu nunca usei uma. Para que serve?

– É muito útil! Você segura a escova com uma mão e não precisa nem balançar, ela balança automaticamente para você. Você sabe, há pessoas que não podem perder tempo e também não conseguem coordenar bem duas ações tão complexas ao mesmo tempo.

Há, o senhor está de gozação comigo!

– Não! É sério! A escova automática é uma invenção tecnológica que envolve microeletrônica.

Mas, foi o Einstein que inventou mesmo essa tal escova?

Não, não foi.

E então? Olhe aí, o que é que ele inventou, afinal?

Bem, o Einstein foi um dos criadores da Física Moderna, talvez o maior de todos. Ele criou a Teoria da Relatividade, pela qual é mais conhecido. Lançou, igualmente, as bases da Teoria Quântica, com um trabalho que lhe valeu o premio Nobel, ao explicar, dentre outras coisas, o efeito fotoelétrico e alguns outros mistérios da ciência da sua época. Sua teoria da Relatividade Restrita foi incorporada na Teoria Quântica pelo Dirac, outro físico de renome e depois essa teoria foi desenvolvida pelo Feynman e isso tudo hoje serve de base para muitas maravilhas tecnológicas.

Mas, dele, mesmo! Assim direto? Pei, buft!

Tem o GPS, por exemplo, sem ele os aviões não desceriam em aeroportos enevoados.

– Mas, isso é muito sofisticado. Onde está mesmo essa tal Física Moderna, atualmente, no dia a dia? Para que ela serve? Qual a sua utilidade prática?

– Eu estava justamente falando sobre isso! Olhe, o difícil é responder onde ela não está.

– Como, assim?

– Porque a Física Moderna está em praticamente tudo que nos cerca. Nessas maravilhas tecnológicas que lhe encantam tanto, nos CDs, nos DVDs, nos aviões, nessa lâmpada fluorescente, no seu telefone celular, nas máquinas maravilhosas da medicina moderna, como o aparelho de ultra-sonografia ou como o tomógrafo eletrônico e em muito, muito mais coisas do que você pode imaginar. Certamente e infelizmente, ela está também nas bombas atômicas que podem destruir a todos nós, mas, a Física Moderna, e com ela a obra de Einstein, não pode ser reduzida a essa dimensão utilitarista que você aponta. Einstein revolucionou a ciência ao questionar os nossos velhos conceitos de tempo e espaço e substituí-los por um contínuo espaço-tempo. A nossa forma de ver o mundo e o nosso lugar no Universo jamais serão os mesmos depois de Einstein e isso é muito maior do que qualquer maravilha tecnológica derivada do seu trabalho.

– Como, assim, eu não estou entendendo o que o senhor quer dizer.

– Desculpe, é que a grandeza de Einstein não pode ser medida pela métrica da régua mesquinha do valor conferido pela sociedade de consumo. Não é possível reduzir a importância da obra de Einstein em uma simples frase de alguns poucos segundos que contente as expectativas egoístas do utilitarismo.

– Mas, nós temos que saber qual é utilidade das coisas, professor. Se uma coisa não for útil, ela não merece a nossa atenção.

– Você acredita, mesmo, nisso? Pois bem, Franklin ao ser questionado, certa vez, ainda no século XVIII, sobre qual seria a utilidade da eletricidade, devolveu a pergunta com um questionamento bem mais inquietante: “Antes, por favor, me responda para que serve um bebê?”. E eu aqui lhe refaço a pergunta de Franklin: Para que servem os bebês? Será que o valor dos bebês pode ser mensurado da mesma forma que o valor de um instrumento qualquer que possa nos satisfazer alguma necessidade prática? Será que o valor de um bebê pode ser aquilatado apenas pelas horas de trabalho que ele puder vir a realizar ao se tornar um adulto ou pelos objetos que algum dia porventura puder vir a construir? Será esse o único valor de nós mesmos? Nós não valemos por nada mais do que isso? Se assim for, que existência sem muito sentido será a nossa!

– Mas, professor, no mundo de hoje o que vale é o dinheiro, é o tutu na mão. Eu estou achando que o senhor é um sonhador e eu não tenho tempo a perder com sonhos. O conhecimento para mim, e eu digo isso aos meus alunos, tem que servir antes de tudo para se ganhar dinheiro. E nesse caso, para ser mais explícito, o que é que o Einstein tem a ver com isso?

– Bem, eu fico triste em saber que você diz isso aos seus alunos. Sinceramente, fico muito triste, pois apesar de estar de acordo com você de que o conhecimento tem o seu valor econômico inegável, ele não se reduz a isso, absolutamente.

– Mas, professor, o que importa, para todos nós, é o que o conhecimento vai poder nos dar economicamente falando. O senhor já ouviu falar que nós vivemos na sociedade do conhecimento e que sem conhecimento as pessoas não têm mais lugar. Hoje em dia cada um vale pelo que ganha e a sociedade só paga bem a quem pode ser útil.

– É mesmo? E útil para que e para quem? Essa conversa de sociedade do conhecimento é coisa para inglês ver em economias globalizadas. Ela faz parte da reengenharia da divisão do trabalho imposta pelas novas necessidades de uma economia neoliberal. Na minha perspectiva o conhecimento premiado pela sociedade de consumo não é o conhecimento necessário, mas o conhecimento muitas vezes do supérfluo, do efêmero, do transitório. Quem ganha mais, um bom médico ou um grande jogador de futebol? Se você pensa desse modo pecuniário, creio que escolheu a profissão errada. Para ganhar dinheiro em uma sociedade de consumo você precisa ser bom no supérfluo, não no essencial. E aí está uma enorme inversão de valores.

– Sei não, professor, a verdade é que um homem vale pelo que ele é capaz de ganhar.

– Ótimo que você diga isso. Assim você me permite apresentar-lhe de um outro modo ao Einstein. Ele dizia que “O valor de um homem não se mede pelo que é capaz de receber da sociedade, mas pelo é capaz de dar à sociedade”. Veja essa sua pressa, de onde ela vem? De onde vem essa angústia em não poder perder tempo que lhe habita?

– Como, assim?

– Nós vivemos em uma sociedade de consumo, em um mundo de relações burguesas apressadas que parecem ser como uma espécie de pedra filosofal pervertida que transforma em uma massa pastosa, asquerosa e fedorenta tudo aquilo que toca. Essa pedra filosofal pervertida chama-se: a pressa burguesa. Isso me faz lembrar um diálogo ferino contido em Alice no País das Maravilhas, no qual o coelho apressado pergunta em uma encruzilhada ao gato chapeleiro: “Qual o caminho que eu devo seguir?” E o gato lhe pergunta: “Para onde queres ir?” “Não sei bem para onde”, responde-lhe o coelho. “Então não te preocupes, pega qualquer caminho que chegarás lá”.

– Essa é mais ou menos a expectativa daqueles que sempre têm pressa em todas as suas ações, que são práticos e que, portanto nunca podem perder tempo. A atitude da pressa burguesa me lembra também a perspectiva daquele preá, aquele bichinho sempre agitado e fedorento, que disse à sua namorada preazinha: “Vai ser bom, não foi?”

– As relações de consumo são todas elas relações efêmeras que se esgotam tão logo se iniciam. Nós somos condicionados para querermos experimentar apenas sensações fortes e efêmeras. Tudo que for mais permanente perde, imediatamente, o seu inteiro valor. As relações humanas são fracionadas em meros instantâneos da realidade. Em tal sociedade de consumo, tudo aquilo que é mais sólido se dissolve no ar.

– Como é? Tudo que é sólido se dissolve no ar? De onde o senhor tirou essa, agora? O que é que isso tem a ver com a pergunta que eu lhe fiz? Eu, apenas, quero uma resposta bem breve sobre alguma coisa relevante, concreta, o senhor entende, concreta, que o Einstein tenha criado.

– Mas, é aí que está a questão. O que para você pode ser um grande ganho de tempo, quando visto de um outro ângulo, de um outro referencial, pode se constituir em uma grande perda de tempo. Ainda que metaforicamente, isso me lembra o fato do tempo ser um conceito relativo.

– Foi o Einstein que disse isso?

– Não, desse jeito foi o Borges.

– Quem é esse? Ele inventou o que? Isso me parece apenas Filosofia e Filosofia, para mim, é pura perda de tempo. A Filosofia não nos leva a lugar nenhum.

– Como dizia um ex-professor meu: “pode ser que a Filosofia não nos leve a lugar nenhum; mas, mesmo assim ela já nos trouxe de muito longe”.

– Palavras, palavras, nada mais que palavras! Mas, quem foi esse tal de Borges?

– O Jorge Luis Borges foi um grande escritor argentino. Ele tem uma estória muito interessante que fala de um cara assim como você, bem prático e que nunca podia perder tempo. Ele também, assim como você achava a Filosofia uma inutilidade.

– Esse é dos meus. Pode continuar.

– Pois, bem. Um dia esse cara estava numa encruzilhada, como aquela em que o coelho encontrou o gato chapeleiro, que eu lhe contei momentos atrás.

– O senhor gosta de histórias com encruzilhadas, não?

– Não sou eu que gosto, meu amigo. A vida é cheia de encruzilhadas e nós precisamos tomar decisões, refletir sobre as nossas ações e precisamos para isso estabelecermos critérios e prioridades. A questão é que esses critérios nem sempre são os melhores possíveis. A pressa, por exemplo, não é o melhor deles. Você sabe: o apressado come cru.

– O senhor invocou, mesmo com essa história da minha pressa, não foi? Mas, vamos logo com essa conversa. Onde o senhor quer chegar?

– Já sei, o senhor está com pressa.

– Isso!

– Pois bem, o cara que o Borges falava, também tinha pressa como você e não podia gastar tempo com reflexões filosóficas sobre a razão de ser das suas atitudes. Assim sendo, como não sabia o caminho a trilhar e não sabia também para onde queria ir, mesmo porque pensar sobre isso seria, para ele, uma grande perda de tempo, fez como lhe indicava o chapeleiro da estória de Alice: pegou o primeiro caminho e pronto, se mandou, pegou o beco, como vocês dizem hoje em dia.

– E aí?

– Aí, que um dia, depois de muito caminhar ele descobriu que não era aquele o caminho que ele queria seguir. E como já havia caminhado muito teve de voltar tudo aquilo e perder um bocado de tempo, justamente por não ter tido tempo para perder tempo. Gostou?

– Achei essa estória meio besta, mas me diga só uma coisinha.

– Pois, não.

– Tem alguma coisa concreta, concreta mesmo, que esse tal de Einstein tenha inventado? Ou ele só fez pensar nessa coisa de tempo e de espaço?

Nesse exato momento aconteceu um milagre: caçapa digital! Apareceu milagrosamente, não sei de onde, o diretor da escola e chamou o nosso jovem professor, que apressadamente correu em atender o chamado do seu diretor sem nem ao menos se despedir de mim.

Eu acompanhei com os olhos o afastamento do meu jovem interlocutor e refleti sobre o sentido daquela nossa conversa. O que ele queria era apenas saber o nome de alguma invenção concreta e útil do Einstein, o nome de alguma engenhoca inventada por ele, não importa o que ela fosse. Talvez lhe servisse até mesmo a tal escova de dentes automática da qual eu havia lhe falado. Mas, a invenção que me parecia mais cabível naquele caso, infelizmente não havia sido, também, criada pelo Einstein. Ocorreu-me que uma invenção utilíssima, naquele caso específico, poderia ser a “caçapa digital”, aquela maquininha maravilhosa de uma antiga propaganda da TV que com um simples aperto de um botão faz com que pessoas incômodas desapareçam instantaneamente.

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