Em Outubro de 2001 a professora Cleide Medeiros e eu apresentamos um trabalho no VIII SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIÊNCIA da SBHC realizado no Museu de Astronomia do Rio de Janeiro. O nosso estudo era intitulado: “As Origens Iluministas do Ideário de Educação e de Ciência contido nos Estatutos de Fundação do Seminário de Olinda em 1800”. Nele nós fazemos ampla referência aos primeiros passos do ensino da Ciência experimental no Brasil, com claras referências à Física, Química e à História Natural. Como o referido trabalho não se encontrava ON LINE até o momento, nós estamos disponibilizando o mesmo, abaixo, na sua íntegra.
AS ORIGENS ILUMINISTAS DO IDEÁRIO DE EDUCAÇÃO E DE CIÊNCIA CONTIDO NOS ESTATUTOS DE FUNDAÇÃO DO SEMINÁRIO DE OLINDA EM 1800
TRABALHO APRESENTADO NO VIII SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIÊNCIA (SBHC)
MUSEU DE ASTRONOMIA – RIO DE JANEIRO – OUTUBRO DE 2001
Cleide Farias de Medeiros (Departamento de Educação) - UFRPE
Alexandre Medeiros (Departamento de Física) – UFRPE
Resumo
A história da fundação do Seminário Episcopal de Olinda pelo bispo Dom Azeredo Coutinho está intimamente ligada à própria história do ensino das ciências no Brasil. Os primeiros cursos da nova Ciência experimental, oposta à Ciência de fundamentação Escolástica medieval, foram conduzidos no Brasil no referido Seminário, no ano de 1800. Para compreendermos a visão que fundamentava um tal ensino analisamos os sentidos de Educação e de Ciência contidos nos Estatutos de fundação dessa instituição. Tendo sido tais Estatutos elaborados pelo seu fundador, o bispo Dom Azeredo Coutinho, investigamos as influências culturais recebidas por este importante personagem da história do nosso país na sua Educação em Portugal. Vemos assim, descortinar-se diante de nós um cenário do Iluminismo português de finais do século XVIII, com Azeredo Coutinho estudando na Universidade Reformada de Coimbra sob a influência direta de seu tio e também Reitor daquela Universidade, o bispo Dom Francisco de Lemos. As influências colhidas por Azeredo Coutinho em Coimbra, mormente as retiradas das obras de Luís Antonio Verney, de Dom Manuel do Cenáculo Vilas Boas e de Antônio Nunes Ribeiro Sanches, foram decisivas na composição do ideário do Seminário de Olinda. A análise do discurso dos Estatutos dessa instituição pioneira revela-nos, assim, as sintonias entre os preceitos adotados em Olinda e as opiniões daqueles pensadores iluministas. A importância que um tal ideário iluminista português teve para o nascimento do ensino da Ciência experimental no Brasil encontra paralelo apenas na importância que este mesmo ideário, agora bem mais ampliado pelas influências francesas, veio a exercer no aparecimento das primeiras revoltas em prol da liberdade do nosso país no início do século XIX.
As Origens do Seminário Episcopal de Olinda
No presente trabalho, a busca das origens do Seminário Episcopal de Olinda extrapola o espaço da simples, embora importante, curiosidade histórica. Esta busca justifica-se, principalmente, por dois motivos: primeiro, pelo fato de que naquele Seminário teve início no Brasil, em 1800, o ensino da Ciência Moderna, isto é, em bases experimentais; segundo, porque aquela instituição foi o berço de futuras revoluções libertadoras (republicanas) neste país – a Revolução Praieira em 1817 e a Confederação do Equador, em 1824, as quais tiveram lugar em Pernambuco. Em tais revoluções houve a participação de lentes e seminaristas que por ali passaram e que extrapolaram as intenções, redirecionando-as no plano político, de seu fundador, então Bispo da Diocese e Governador de Pernambuco, D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho.
Aqui chegando, em 1535, para administrar a Capitania de Pernambuco, Duarte Coelho Pereira mandou erigir uma ermida, pequena capela afastada, em um monte, futura Olinda, em homenagem a Nossa Senhora da Graça. Posteriormente, em 1551, tal ermida foi doada à Companhia de Jesus. Cerca de vinte anos após, ali foi iniciada, no terreno ao seu lado, a fundação de um Colégio Jesuíta, cuja construção iniciara-se em 1571. Sua inauguração foi realizada em 1576 a partir de um alvará de D. Sebastião, rei de Portugal. Este Colégio esteve em funcionamento por cerca de quase duzentos anos, havendo o seu fechamento em 1759 quando da expulsão dos Jesuítas de Portugal e de suas colônias.
O antigo prédio esteve abandonado por, aproximadamente, quarenta anos, tendo sido em 1798 doado à Diocese para a fundação do Seminário Episcopal de Olinda.
D. Azeredo Coutinho que havia sido nomeado bispo da Diocese em 1795, chegara a Pernambuco em 1798 encontrando a cidade de Recife em crescente desenvolvimento mercantil. A administração da Província localizava-se em Olinda a qual situada no monte, com uma bela vista do mar e da cidade de Recife, ainda guardava um aspecto rural.
Aspectos da Formação Cultural de Azeredo Coutinho
Azeredo Coutinho nasceu em Campos de Goitacazes (Rio de Janeiro) em 1742. Primogênito de uma família de ricos senhores de engenho e com parentes na Corte bastante influentes, fez seus primeiros estudos no Convento dos Carmelitas no Rio de Janeiro.
Com a morte de seu pai em 1768, administrou durante sete anos os bens de sua família. Renunciando a sua progenitura, foi em 1775 estudar Filosofia, Teologia e Direito Canônico na Universidade Reformada de Coimbra. Ali recebeu uma forte influência de Francisco de Lemos Azeredo Coutinho, seu tio, Reitor e principal reformador da Universidade de Coimbra, forte personagem iluminista e pessoa de confiança do Marquês de Pombal.
Azeredo Coutinho tornou-se Bacharel em 1780 e, em 1784, Arcediago do Rio de Janeiro. Licenciou-se pela Faculdade dos Sagrados Cânones (Universidade de Coimbra) em 1785. Neste mesmo ano de 1785 foi nomeado para o Tribunal do Santo Ofício. Tornou-se sacerdote em 1794, um ano antes de ser nomeado décimo segundo Bispo de Pernambuco.
Nesta segunda metade do século XVIII, receberá uma grande influência das obras de vários intelectuais portugueses com formação adquirida, principalmente, em outros países da Europa e impregnada com as luzes do progresso. Dentre esses pensadores, encontram-se Martinho de Mendonça de Pina e Proença, Luis Antonio Verney, Manuel do Cenáculo Vilas Boas e Antonio Nunes Ribeiro Sanches. Por gozar da amizade do Ministro D. Rodrigo Coutinho, receberá, também, a sua influência marcada pela visão da ciência experimental como motor do progresso.
Ideário sobre Ciência e Educação dos Estatutos do Seminário de Olinda e de Alguns Iluministas Portugueses
O Concílio Ecumênico de Trento (Itália), realizado no período de 1545 a 1563, procedeu a uma grande reformulação do Catolicismo, restaurando a disciplina na Igreja Romana e atuando como uma resposta à Reforma Protestante. Uma de suas determinações foi que “deveria ser criado em cada Diocese um seminário para formação de candidatos ao sacerdócio” (Mello, em Nogueira, 1985, Prefácio).
Os Estatutos de fundação do Seminário Episcopal de Olinda foram elaborados com a feição de um ‘Seminário-Colégio’, “para neles instruir a Mocidade da [...] Diocese no conhecimento das verdades da Religião, na prática dos bons costumes, e nos estudos das artes, e ciências, que são necessárias para pulir o homem, e fazer Ministros dignos de servirem à Igreja, e ao Estado” ( Azeredo Coutinho, 1798, p. 6; grifo nosso).
As concepções de Ciência e de Educação, explícita ou implicitamente, contidas nos Estatutos do Seminário de Olinda guardam semelhanças, em aspectos variados, com o ideário de alguns iluministas portugueses sobre esta temática.
A comparação feita no presente trabalho focaliza apenas algumas idéias apresentadas na literatura disponível e relativas aos seguintes iluministas portugueses: Martinho de Mendonça de Pina e Proença (Guarda, 1693 – Lisboa, 1743), Antonio Nunes Ribeiro Sanches (Penamacor, 1699 – Paris, 1783), Antonio Luis Verney (Lisboa, 1718 – Roma, 1792) e Manuel do Cenáculo Vilas Boas (Lisboa, 1724 – Évora, 1814).
A apresentação da comparação é feita tendo em vista o ano de publicação de suas obras mais importantes (ou disponíveis) relativas ao presente trabalho.
Na medida em que se mostraram disponíveis idéias relativas à Ciência e à Educação, essas ideias foram organizadas, respectivamente, em um tópico relativo à concepção de ciência, propriamente dita, e em cinco tópicos relativos à concepção de Educação. Os tópicos são os seguintes:
1. Da Ciência Vigente à Concepção de Ciência Moderna Necessária;
2. Relacionamento Educação X Sociedade (Objetivos Sócio-Políticos da Educação);
3. Valores Éticos Estabelecidos Versus Novos Valores;
4. Organização dos Indivíduos na Sociedade
5. Relacionamento Interpessoal ‘Professor – Aluno’. Os tópicos relativos à concepção de educação justificam-se pelo fato de que toda visão de educação pressupõe uma visão de homem e de sociedade a ser construída ou mantida.
Da Ciência Vigente à Concepção de Ciência Moderna Necessária
Os Estatutos do Seminário de Olinda, como todo regulamento que busca estabelecer as regras e normas para o bom funcionamento de uma instituição, apresentam-se de forma sucinta não incorporando, visto que esta não seria a finalidade, extensas digressões acerca das ideias ali postas. Entretanto, alguns posicionamentos, explícitos ou implícitos, de seu autor, Azeredo Coutinho, tornam-se claros. Os objetivos propostos em tais Estatutos representam uma grande inovação para aquela época cuja educação no Brasil pautava-se, ainda, conforme uma visão de mundo e de relacionamento humano colonial.
Componentes constitutivos de uma visão empirista da ciência são apresentados recorrentemente nos Estatutos enfatizando a tarefa da ciência como sendo a de descobrir verdades sobre a natureza e afirmando a necessidade do ensino das verdades ‘de fato’, ‘ávidas de observação’ dos reinos animal, vegetal e mineral (Azeredo Coutinho, 1759, p. 43). A produção científica é colocada como proveniente da observação direta dos fenômenos acentuando o papel das sensações na descoberta de suas verdades. Assim, “as regras para a boa educação devem principiar pelas ideias mais simples que entram pelos olhos e pelos ouvidos para, então abordar as mais sublimes e abstratas” (Azeredo Coutinho, 1798, p. 35; grifos nossos).
O Ensino a ser feito é o da indagação das propriedades particulares dos corpos, seus princípios; descobrindo-se os efeitos, virtudes e propriedades relativas da aplicação de uns com os outros. Apresentam, ainda, os Estatutos, uma visão de Ciência pragmático-utilitarista cujo ensino deveria ser feito através de um compêndio moderno, pautado na clareza e na abordagem a questões úteis sem difusões nem perplexidades (Azeredo Coutinho, 1798, p. 43).
O ensino de Mecânica e Hidrostática, partes da Física Experimental, deveria estar direcionado pelo ensino de princípios “para a inteligência das máquinas e de suas forças” e de princípios “para fazer mover e levantar grandes corpos e conduzir as águas em um país cujo fundo principal consiste na agricultura, no trabalho de lavrar as terras, cavar, extrair os minerais, etc.” (Azeredo Coutinho, 1798, p. 43).
A importância do ensino da Matemática e da sua utilização na ciência aparece nos Estatutos nas referências à Aritmética e, em particular, à Geometria, apontando que: “esta ciência requer todas as atenções possíveis, e serve de acostumar o entendimento a sentir a evidência dos raciocínios, a procurar a exatidão e o rigor geométrico das demonstrações e discorrer metodicamente em qualquer matéria [...] Acabada a Geometria [...] passará a explicar a Álgebra elementar [...] que é a chave de todos os descobrimentos, a que pode chegar o espírito humano a respeito de tudo o que é quantidade” (Azeredo Coutinho, 1798, pp. 356-357; grifo nosso).
Vários são os posicionamentos dos iluministas portugueses aqui abordados que guardam uma forte sintonia com a visão de Ciência presente nos Estatutos do Seminário de Olinda. Posicionamentos incorporando uma visão empirista e pragmático-utilitarista são comuns no ideário de Ciência e fortemente defendidos por aqueles iluministas portugueses.
Martinho de Mendonça de Pina e Proença, nobre, autor dentre outras obras de Apontamentos para a Educação de um Menino Nobre (1734), apresentou em suas preocupações pedagógicas a sua preferência por “uma cabeça arrumada a uma recheada”, propondo uma Educação “sublinhando sempre a importância pedagógica dos ‘exemplos’ e das imagens sensíveis, na transmissão de noções abstratas [....], da Geografia, da História e da Aritmética [...] entendida como arte de dirigir e aperfeiçoar as operações da mente, desligada das problemáticas tradicionais da lógica formal” (Calafate, 1998; grifos nossos) bem como da Geometria, Álgebra, Trigonometria e Física.
Luis Antonio Verney, frei teatino, cuja principal obra Verdadeiro Método de Estudar (1746), e mais polêmica, pauta-se, dentre outras muitas características originais e marcantes, pela crítica esmagadora e desapiedada (podemos dizer mesmo, com uma soberba inigualável) ao sistema filosófico e de ensino da Companhia de Jesus e que viria respaldar as reformas operadas no período Pombalino.
Verney apresenta o principal problema da filosofia natural escolástica como sendo o do uso permanente de silogismos, ausência de observações neutras e ausência de matemática na abordagem epistemológica dos fenômenos naturais e que, segundo ele, constituía uma prática típica dos filósofos peripatéticos. A sua defesa de uma visão empirista de ciência é apresentada, recorrentemente, no ‘Verdadeiro Método’, particularmente no volume três constituído por um conjunto de quatro longuíssimas cartas. Assume Verney a posição do papel da Ciência como o de descoberta da verdade sobre os fenômenos da natureza, observando-se de forma neutra e direta os seus efeitos, buscando as suas causas e firmando os princípios inerentes resultantes de medições expressas com a exatidão da matemática.
Dentre os inúmeros excertos desta sua obra, são bastante esclarecedores os seguintes, aqui apresentados com a ortografia original:
• “Para discorrer bem sobre a natureza é necessário ter juízo claro, com todos os requisitos para observar bem: observar muito e bem, ou saber-se servidos que o fizeram, e fundar os seus raciocínios em princípios evidentes, quais são os matemáticos” (Verney, 1746, reedição 1950, pp. 102-103; grifos nossos);
• “Este deve ser o primeiro emprego do físico: observar e discorrer. Não devemos querer que a natureza se componha segundo as nossas ideias; mas devemos acomodar as nossas ideias aos efeitos que observamos na natureza” (Verney, 1746, reedição 1950, pp. 190-191; grifos nossos);
• “A Física é a ciência que examina a natureza do Corpo e Espírito mediante os efeitos que conhecemos” (Verney, 1746, reedição 1950, p. 207);
• “O fim do físico é descobrir a verdadeira causa dos efeitos naturais; e, para conseguir este fim, não deve fazer caso do que dizem os outros, sim do que mostra a experiência” (Verney, 1746, reedição 1950, p. 203);
• Seria supérfluo empregar-se no estudo da Física, “sem ter primeiro os requisitos necessários; quero dizer: sem ter primeiro estudado Geometria e Aritmética” (Verney, 1746, reedição 1950, pp. 204-205).
Semelhantemente a Verney, Manuel do Cenáculo Vilas Boas, co-autor dos documentos dos novos Estatutos da Universidade Coimbra, autor dentre outras obras, das Conclusiones Philosophicas (1747) também dirigiu críticas à Escolástica; porém, de forma moderada. Sublinhou, ainda, o papel da Matemática na eficácia da transmissão da verdade enaltecendo o matematismo, caracterizado pelo método geométrico (Calafate, 1998).
Antonio Nunes Ribeiro Sanches, que além de ter uma formação ampla, era médico de origem judaica, faz em sua principal obra educacional Cartas sobre a Educação da Mocidade (1759) uma verdadeira ‘radiografia’ do que seriam os problemas da sociedade portuguesa do século XVIII, diagnosticando-os e prescrevendo soluções. Aborda os comportamentos dos portugueses nos planos educacional, social, político-administrativo e econômico, travando uma verdadeira batalha intelectual contra os privilégios da fidalguia e dos eclesiásticos daquela época. Esta sua obra foi um marco decisivo, ao lado do Verdadeiro Método de Verney, para as reformas pombalinas em um sentido amplo.
No plano da Ciência e de seu ensino, denominou-os de ‘gíria filosófica’ referindo-se aos ensinamentos Escolásticos; em sua visão, responsáveis pela ‘imbecilização’ portuguesa dominante. Vários são os fortes excertos desta sua obra que exemplificariam o seu ponto de vista tanto de insatisfação com a cultura científica reinante como colocando-o como um defensor fervoroso de uma ciência experimental pautada em uma visão empirista. Por exemplo:
• “Ninguém que passou por aquelas escolas negará o referido: esta filosofia é a produção dos séculos da ignorância, do ócio dos frades depois que deixaram o trabalho de mãos que ordenava a sua regra” (Ribeiro Sanches, 1759, Apud Ferreira, s.d., Prefácio, p. 20 );
• “Os padres da [Companhia de Jesus] no fim do terceiro ou quarto ano acham, de duzentos discípulos, somente três ou quatro que puderam compreender aquela gíria... E que engenhos são estes que não podem compreender aquela gíria com nome de filosofia? São aqueles que são excelentes para escrever a poesia, a história, as leis, as quais dependem da memória e da imaginação; são aqueles que seriam grandes conselheiros e estadistas, negociantes, generais, engenheiros e matemáticos, os quais empregos pedem imaginação viva e uma natural prudência. E quem são aqueles que podem compreender aquela gíria de Aristóteles? São aqueles engenhos melancólicos, de poucas palavras, amigos de viver sós, aqueles misantropos ou aborrecidos dos homens [...] Eis aqui tantos bravos engenhos se perdem com esta filosofia” (Ribeiro Sanches, 1759, Apud Ferreira, s.d., Prefácio, p.22 );
• “Este ensino, ainda que com vinte e quatro lentes e muitos conductários, não é suficiente para se educarem os súbditos de que tem necessidade o reino. Porque nestas quatro Faculdades não entra a ciência natural [...] porque a Faculdade de Medicina que existe em Coimbra é insuficiente para aprender o que necessita o naturalista, o físico, o químico, o médico e o anatomista. A jurisprudência e o direito canônico que se ensina na nossa Universidade não são bastantes para formar conselheiros de Estado, secretários de Estado, embaixadores, generais, almirantes, etc.” (Ribeiro Sanches, 1759, reedição, s.d., pp. 158-159).
• “Depois de estudar esta filosofia, o estudante sai com o juízo torto ou fica incapaz de estudar e aplicar-se por toda a vida” (Ribeiro Sanches, 1759, Apud Ferreira, s.d., p. 21).
Os posicionamentos acima são semelhantes àqueles lançados, cem anos atrás antes de Descartes, como alicerces desta visão de ciência necessária na exortação de Bacon ao método experimental: “quereis conhecer a essência das coisas? Não o pergunteis às autoridades reinantes na Escola: renunciai à antiguidade que, por imitada até hoje, tudo estragou. O nosso saber está formado de preconceitos. Rompamos, pois, com opiniões e sistemas a priori. A filosofia só poderá salvar-se desprezando completamente a tradição greco-escolástica: temos de aderir, queiramos ou não, ao método experimental” (Bacon, apud Ferreira, s.d., Prefácio, p.23; grifos nossos).
Referindo-se à utilização de instrumentos no Gabinete de Filosofia Natural, a visão de Ciência de Ribeiro Sanches transparece colocada na mesma direção dos posicionamentos dos outros iluministas mencionados. Referindo-se à exibição pelo mestre de instrumentos como moinhos de vento, bomba pneumática, etc., a visão do menino observador e sua curiosidade o incitariam a: “perguntar a causa daqueles efeitos que vê obrar por aqueles instrumentos, e ficará informado a não ter por milagres o que são efeitos da natureza [...] Mas, [...] necessitamos para ser exatos pesarmos, medirmos e contarmos tudo aquilo que temos adquirido pela observação, leitura e ensino, etc. A aritmética, álgebra, geometria, trigonometria plana são necessárias para medirmos as alturas, os comprimentos, as distâncias e as profundidades. Além desta utilidade, têm estas ciências outro bem necessário à mocidade: elas acostumam a serem atentivos e exactos no que fazem, a não crer de leve, a ficar convencido pela sua razão, instigam a seguir e indagar que é evidente, ou pelo menos certo, e a descansar quando se achou a verdade” (Ribeiro Sanches, 1759, reedição, p. 167, grifos nossos).
Relacionamento Educação X Sociedade: Objetivos Sócio-Políticos da Educação
Nos Estatutos do Seminário de Olinda, transparece a visão prática, bastante coerente com a visão de Ciência acima delineada, de que os objetivos da educação não deveriam ser a educação pela educação, como um ‘fim em si mesmo’ ou para a mera erudição de seus detentores. A visão é de que “os discípulos precisam ser hábeis e bons cidadãos” (Azeredo Coutinho, 1798, p. 34). O progresso do reino de Portugal era a meta a ser atingida e a Ciência deveria servir para isto. O direcionamento do ensino daquele Seminário, principalmente para alunos pobres brasileiros, trazia embutida o pragmatismo de seu fundador que visava gerar conhecimentos cuja importância não se limitasse a questões intelectuais; exibindo uma visão utilitária da Ciência, voltada para suprir parte das preocupações econômicas de seu fundador, qual seja a de gerar a possibilidade de comercialização dos produtos do conhecimento aqui produzidos.
Até mesmo a escolha da população-alvo do Seminário como sendo oriunda da pobreza indica mais uma vez o seu lado pragmático, pois, dificilmente, os filhos das famílias abastadas, que ali também poderiam estudar autofinanciando os seus estudos, dispor-se-iam a adentrar em lugares ermos e despojados do conforto dos engenhos em que viviam. Ao findarem os seus estudos de seminaristas, o seu rumo seria estudar na Corte. Assim, é patente esta sua preocupação econômica que, também, denota a sua preocupação precursora com a assim chamada, hoje, de ‘biodiversidade’. “No seu livro sobre as Minas do Brasil, Azeredo Coutinho comenta e explica a razão e o motivo dessa orientação pedagógica dos estudos do Seminário.
“Quando o habitante dos sertões e das brenhas for filósofo, quando o filósofo for habitante das brenhas e dos sertões, ter-se-á achado o homem próprio para a grande empresa das descobertas da natureza e dos seus tesouros; o ministro da Religião, o pároco do sertão e das brenhas, sábio e instruído nas ciências naturais é o homem que se deseja. Eis aqui o objeto que tive em vista quando aos estudos eclesiásticos juntei estudos das ciências naturais nos estatutos que fiz para o Seminário de Pernambuco por ordem de S.A.R. e que correm impressos: Estatutos do Seminário Episcopal de N. S. da Graça da Cidade de Olinda de Pernambuco, part. 3, cap. 5º . O pároco principalmente rural ou do sertão em razão de seu ofício, há de ir procurar uma e muitas vezes as suas ovelhas espalhadas pelas brenhas, pelas matas, pelos campos e pelos desertos; onde quer que habitar a sua ovelha, ele viverá com ela; nestas continuadas jornadas para muitas e diversas partes, repetidas vezes no ano, e muitas vezes por caminhos nunca trilhados ele verá quase sempre objetos novos e variados, ele examinará por si mesmo os produtos da natureza em todas as estações do ano: o animal, o mineral, o vegetal, a planta, a raiz, a flor, as sementes, tudo será analisado. O seu paroquiano sertanejo e silvestre, ainda mal convalescido, lhe fará ver a erva que o salvou das garras da morte, aquela erva que a providencia sempre conservadora de sua obra, fez nascer junto à choupana do pobre, aquela raiz que ele no meio da desesperação, sem esperança de algum socorro humano, arrancou, mastigou, engoliu, talvez já sem algum acordo; e que conhecimento não adquirirá esse pároco das ervas medicinais e das suas virtudes, à custa de repetidas experiências pelos seus paroquianos? E de que socorro não serão essas descobertas para a humanidade, e ainda mesmo para o comercio. Todos estes e outros muitos prodígios da natureza, descobertos só por ela mesma, o pároco, instruido nas ciencias naturais e no desenho, saberá descrever cientificamente, e os fará ver aos sabios; ele os desenhará como mestre, com as mais vivas cores de que os revestiu a natureza, ele os fará conhecer até daqueles que apenas tem olhos” (Azeredo Coutinho, Apud Nogueira, 1985, p. 285).
Como vimos acima, na apresentação das visões da Ciência necessária, Azeredo Coutinho não enaltecia a educação como um fim em si mesmo; mas, ao contrário, articulada para a solução de problemas do Estado. Numa mesma direção, Ribeiro Sanches enfatizava que educação deveria formar um núcleo de estadistas. Para isso seria necessária, dentre outras coisas, a decência na atividade intelectual do país e a Ciência deveria ser aprendida como um meio para o desenvolvimento e não como um fim em si mesmo. A educação deveria ser útil para desenvolver a agricultura e a indústria em Portugal e resolver os problemas práticos da sociedade. A glória e o aumento dos reinos não provêm de guerras; mas, da educação dos monarcas e de seus súditos (1759, reedição, s.d.; grifos nossos).
Valores Éticos Estabelecidos Versus Novos Valores
Nos Estatutos do Seminário de Olinda, na ‘observância moral’ em três seções: ‘da obrigação do homem a respeito de Deus’, ‘da obrigação do homem a respeito de si mesmo’ e ‘da obrigação do homem a respeito dos outros homens’ traziam implícita a idéia base do - eduque-se a criança e não será preciso punir o adulto -, educando-se desde cedo a refrear vícios, paixões, apetites desordenados, regalias. Vários excertos, tais como os que seguem, enfatizam preceitos nesse direcionamento. “Sem virtude não há verdadeira Sabedoria [...] o temor a Deus refreia todas as paixões que desordenam a vontade. Na moderação das paixões consiste a felicidade da vida”; “este santo temor pauta-se no conhecimento pelo homem de suas obrigações: o respeito a Deus, a si mesmo e aos outros homens”; “desde os primeiros anos, o homem deve arrancar de seu coração os vícios, más inclinações, os apetites desordenados e lançar a semente da virtude”; “é preciso renunciar a si próprio acostumando-se a uma vida laboriosa, fugindo a toda ociosidade e a não se desgostarem com as dificuldades e trabalhos que encontrarem na vida”; “é preciso satisfazerem-se com o que é necessário para viverem e enfrentarem tudo o que possa ocorrer de modo contrário às suas inclinações; enfim, “viverem no mundo e usar dele com moderação e temperança como se dele não usassem” (Azeredo Coutinho, 1759, pp. 25 – 32; grifos nossos).
Os preceitos preconizados por Azeredo Coutinho apresentam uma grande sintonia com os valores detectados como defeitos da fidalguia portuguesa (século XVIII) por Pina e Proença e que deveriam ser removidos pela educação do menino nobre, tais como as características de gênio soberbo e insolente e a afetação na imitação de comportamentos de forma artificial. A educação do menino nobre, por ele defendida, trazia um forte repúdio às regalias e privilégios individuais os quais deveriam ser combatidos com ensinamentos desde a primeira infância (Calafate, 1998).
Ribeiro Sanches, de forma similar, apresentou, recorrente e espaçadamente em sua obra Cartas sobre a Educação da Mocidade, um repúdio radical à cultura portuguesa do século XVIII. Ele lista constantemente, e de forma perspicaz, vários valores embutidos no comportamento de seus compatriotas a serem combatidos e eliminados através da educação e de novas leis a serem implantadas. Se houvesse necessidade, a manutenção de certos valores e comportamentos deveria ser fortemente punida. Imbuído da visão de que o progresso dependeria da educação dos súditos, registra, por exemplo, o tratamento do fidalgo com os criados como se esses fossem escravos, maltratando-os sem atender “à igualdade que deve existir entre ele e o seu criado ou vilão” (1759, reedição, s.d., p. 97); o relacionamento insociável entre compatriotas que rotineiramente pareciam estar em guerra uns com os outros, cada um agindo no papel de Senhor do Estado; a intolerância racial e religiosa caracterizada como uma verdadeira neurose, da qual o mesmo fora uma vítima até os últimos dias de vida; o repúdio doentio às revoluções do progresso no plano das ideias; abuso e inadequação do poder do Clero e a consequente necessidade de uma mudança nas leis.
A introdução de uma nova mentalidade no plano dos valores acarretaria mudanças na vida social e política. Os reis viriam a precisar de novos conselheiros, por exemplo, para não acatarem tudo o que lhes propunha os seus conselheiros religiosos julgando, desavisadamente, tais conselhos, como úteis para a conservação do Estado. No modo em que as ordenações eram constituídas, as leis eram sempre favoráveis aos eclesiásticos, não pagando impostos, por exemplo, como se esses não fossem súditos do Estado, em uma espécie de Estado paralelo. Na visão de Ribeiro Sanches, os eclesiásticos consideravam-se “uma monarquia cuja cabeça é o papa, independente del-Rei para obedecer-lhe e para servi-lo...” (1759, reedição, s.d., p. 98 ) . Isso reafirmava, recorrentemente, prejudicava a igualdade da justiça civil.
Organização dos Indivíduos na Sociedade
Esta temática apareceu mais perceptivelmente nos Estatutos do Seminário de Olinda e nas Cartas sobre a Educação da Mocidade, inevitável em ambos. No primeiro texto, porque além da visão de mundo do seu elaborador, esteve este possivelmente inspirado diretamente (através de leitura das Cartas) ou indiretamente (através da leitura dos Novos Estatutos da Universidade de Coimbra). No segundo texto, as Cartas , o seu autor dedicou-se a questões sociais muito práticas carentes de solução.
Nos Estatutos do Seminário de Olinda, o seu fundador apresenta uma concepção de justiça relativa diferenciando a igualdade dos homens na esfera das propriedades essenciais e acidentais. A visão apresentada é a de que a sociedade deveria ser um corpo orgânico harmonioso animado por um espírito de caridade.
Os homens são iguais entre si em suas propriedades essenciais, pois são filhos de um mesmo Pai; entretanto, nem todos são iguais nas propriedades acidentais e estados adventícios: nisto diferem uns dos outros segundo a ordem em que os pôs no mundo, a Providência. Daí decorre certos graus de perfeições com certos e maiores direitos que não podem ser compartilhados por todos. Assim, a reverência, obséquio e obediência devem ser prestados pelo inferior àqueles de superior estado: os filhos aos pais, os discípulos aos mestres, os moços aos velhos, o povo aos magistrados, os vassalos aos soberanos, etc. Em resumo, o bem público da comunidade deve ser preferenciado ao bem das partes.
Fica perceptível que esse bem ‘público’ não se refere a um bem a ser compartilhado por todos, incluindo os desprivilegiados economicamente.
Extrapolando o espaço dos Estatutos, Azeredo Coutinho defendia, em outras obras, a escravidão, o tráfico de negros e o absolutismo com bastante afinco numa visão extremamente pragmática. A partir do conceito de justiça relativa em relação a cada estágio concreto de cada sociedade específica, fazia a apologia da melhor condição que cabia ao escravo em relação ao trabalhador livre, como se essa condição fosse, na verdade, uma boa alternativa à condição de assalariado. A questão, para ele, estava na escolha entre o ‘maior bem e o menor mal’ para os indivíduos em sociedade, preservando as propriedades acidentais e estados adventícios acima mencionados. O trabalho livre seria cabível, para ele, nas condições socioeconômicas da Europa, posto que em estando o trabalhador expropriado dos meios de produção, não havia para ele outra escolha senão a de assalariado. Mas, no Brasil, a única saída era a compulsão ao trabalho associada ao trabalho escravo que garantiria a permanência do trabalhador junto ao capitalista (Alves, 2000). O ‘mal menor’ causado ao escravo ficava assim expresso em suas palavras: “... o chamado escravo, quando está doente, tem seu senhor que trata dele, de sua mulher e de seus pequenos filhos, e que o sustenta, quando não por caridade, ao menos pelo seu mesmo interesse; o chamado livre, quando está doente ou impossibilitado de trabalhar, se não for a caridade dos homens, ele, sua mulher e seus filhos morrerão de fome e de miséria: qual, pois, desses dois é de melhor condição? Ou qual desses dois poderá dizer com arrogância: ‘Eu sou livre pelo benefício das luzes ou pela civilização dos filósofos?” (Azeredo Coutinho, Apud Alves, 2000, p. 64). Em sua visão, “o trabalho livre ensejaria ao negro a possibilidade de adentrar-se pelo Brasil, cujas terras eram devolutas e, aí, restaurar a organização social que lhe era peculiar na África” (Alves, 2000, p. 63). Num desafio aos filósofos defensores de uma justiça absoluta e imutável, ele os submete à ‘difícil’ decisão de posicionarem-se acerca da abolição, de fato, da propriedade privada.
A preocupação social de Azeredo Coutinho era com a sociedade cujo status quo dos grupos dominantes buscava manter e favorecer, em especial com o Estado de Portugal e não com o povo brasileiro humilde com o qual ele parecia não demonstrar nenhum vínculo étnico, racial ou cultural em seu sentido mais amplo, incluindo conhecimentos e comportamentos.
Esta postura ideológica de Azeredo Coutinho com a hierarquização das classes sociais, pelo menos com relação ao negro, aproxima-se daquela exibida por Ribeiro Sanches, nas Cartas sobre a Educação da Mocidade, nas quais este iluminista português fazia a defesa de uma educação moderna exclusiva para os nobres ou outros detentores de condições econômicas favoráveis, os burgueses endinheirados, negando o seu direito aos plebeus. A razão para essa posição de exclusividade da educação para a fidalguia, era a sua crença de que primeiro, “quem trabalha faz um acto virtuoso, evita o ócio – vício o maior, contra a religião e contra o Estado. E S. Bento achou o trabalho de mãos de tanta virtude, que o pôs por regra de sete horas cada dia. Isto é o que basta para a boa educação da mocidade plebléia” (Ribeiro Sanches, 1759, reedição, s.d., p. 131) e, segundo, a crença de que faltariam trabalhadores braçais para atividades próprias dos deserdados da riqueza, tais como, o jornaleiro, os pescadores no mar alto e os tamborileiros na tropa. Na visão deste monarquista absolutista, em sua concepção de justiça, também relativa, ao aprenderem a ler e a escrever, os meninos já sonhavam em serem frades nas cidades e quando isso acontecesse ficaria a casa do pai sem sucessor e, portanto, havendo o risco do campo ficar despovoado sem mão de obra produtiva barata: “os filhos dos lavradores fogem das casas de seus pais: o remédio seria abolir todas as escolas em semelhantes lugares” (Ribeiro Sanches, 1759, reedição, s.d., p. 128).
Talvez menos por uma visão humanitarista e mais por uma visão com bases prática e econômica, Azeredo Coutinho tenha contribuído com uma educação moderna voltada para jovens oriundos de uma classe social brasileira desprivilegiada economicamente. Este bispo, cujo trabalho extrapolou a educação de futuros religiosos voltando-se para a educação de futuros cidadãos úteis ao Reino português, esteve certamente muito inspirado no ideário das ‘Cartas sobre a Educação da Mocidade’ (Ribeiro Sanches), tendo sido este último um extremo defensor de uma educação exclusivamente laica.
A intenção do bispo de Olinda não se esgotou na mera questão religiosa, pois esperava fortemente que os seminaristas viessem, ao mesmo tempo, a atuarem como cidadãos úteis ao Estado os quais, dados os seus afazeres cristãos, estariam em contato com os mais remotos agrupamentos humanos em locais ermos (as ‘brenhas’ como ele menciona) com quem muito aprenderiam a respeito de remédios naturais por eles utilizados e, ao término de sua formação, estariam capacitados, vindo a fazerem registros com descrições e desenhos minuciosos de plantas medicinais desconhecidas e de outros seres vivos porventura encontrados na zona tórrida do Brasil. Os filhos oriundos de grupos economicamente bem sucedidos, dificilmente, se dariam a esta tarefa, buscando, ao invés disso, dar prosseguimento aos seus estudos no reino de Portugal. Havia, então, da parte de Azeredo Coutinho, uma preocupação precursora com a biodiversidade brasileira cujo conhecimento seria colocado à disposição do Reino de Portugal para, inclusive, o seu proveito econômico. Na verdade, questões econômicas constituíram uma temática à qual Azeredo Coutinho esteve muito voltado em seus escritos. Neste sentido, a preocupação de Azeredo Coutinho não esteve, certamente, voltada para a emancipação político-econômica do povo brasileiro do qual ele fazia parte por ter aqui nascido. Oriundo de uma família abastada portuguesa, de senhores de engenho, ele agia como se Portugal fosse a sua pátria buscando contribuir para o seu desenvolvimento cultural e econômico.
No que tange a esta questão da organização social dos indivíduos, Ribeiro Sanches foi um crítico da escravatura, entendida como um legado dos privilégios da fidalguia portuguesa. Para ele, “se a ‘escravidão’ faz perder aquela igualdade civil que faz o vínculo e a força do Estado, a ‘intolerância’ faz perder aquela humanidade que é o desejo de a conservar para imitar o Supremo Criador, que tudo criou e tudo está continuamente conservando” (Ribeiro Sanches, 1759, reedição, s.d., p. 111).
É interessante observarmos que o conceito de igualdade defendido por Ribeiro Sanches era, no entanto, um conceito de igualdade também relativa no relacionamento entre fidalgos e os criados e os vilões. Tratava-se de uma igualdade baseada apenas em: primeiro, no bom trato entre seres humanos; segundo, na oferta de condições mínimas de vida facultando terras para os campesinos. Terceiro, a necessidade de formação dos bens livres com a propriedade das terras vinculadas ou pertencentes à coroa pelos súditos, tal como ocorrera em 1500, na Inglaterra, para aqueles que pudessem arcar com as despesas financeiras. O rei Henrique VII “para diminuir os privilégios da nobreza (que gozava dos mesmos como a nossa), e ao mesmo tempo queria introduzir a agricultura e o comércio [...] sem violentar nenhum nobre, sem tirar-lhe nenhum privilégio executou o que quis, e foi a base da grandeza daquela monarquia. Decretou uma lei: que cada barão ou senhor de terras vinculadas ou pertencentes à coroa ou a morgados ficava autorizado de as vender, alienar ou arrendar, dispondo-se de toda a posse e usufruto delas [...] como naqueles tempos começava o luxo, os senhores pouco a pouco foram vendendo e alienando as suas terras, as quais compravam aqueles que tinham dinheiro. Deste modo, vieram os bens livres, e se introduziu a igualdade e a justiça naquele reino, e foi conhecida a propriedade dos bens de cada súbdito” (Ribeiro Sanches, 1759, reedição, p.102). A igualdade seria uma igualdade dentre os que tinham poder econômico e aquela que incluísse, para todos, a verdadeira liberdade, mesmo que em moldes ideais, não fazia parte de seu ideário. Certas coisas como o direito ao acesso à cultura erudita, potencializada em seu efeito libertador, era de fato, negadas para os despossuídos. O que importava era o desenvolvimento do Estado e a criação de um espaço político para a crescente burguesia.
Não se trata de tornar a mocidade plebeia, aqueles que pelo nascimento não têm posses, em bestas selvagens, mas de entender que “o trabalho corporal, ter o ânimo ocupado, é a maior virtude; se soubessem que, adquirindo aquele hábito de trabalhar desde a primeira meninice, lhes serviria da melhor instrução por toda a vida...” (Ribeiro Sanches, 1759, reedição, s.d., p. 130).
Para o Estado poder legislar proibindo escolas de leitura nas aldeias, seria preciso que o Estado entendesse o trabalho e a indústria como a base do Estado civil e gastasse “uma certa parte de seu rendimento na ereção e fundamentos do trabalho e da indústria [...] Não necessitaria esta classe do povo de outra educação do que os pais e mães estivessem empregados no trabalho; e seus filhos, não tendo outro recurso para ganharem a vida, seguiriam aquele caminho que exercitavam os progenitores e os tutores. Quem trabalha faz um acto virtuoso, evita o ócio – vício o maior, contra a religião e contra o Estado” (Ribeiro Sanches, 1759, p. 130).
Azeredo Coutinho, foi um filho de família de senhores de engenho e acostumado a lidar com as esferas do poder econômico e político vigente e Ribeiro Sanches, foi um judeu, filho de sapateiro e acostumado a uma vida desde a mais tenra idade repleta de dificuldades e perseguições racistas onde como ele mesmo relata: “tudo o que a história conta das infâmias, da inveja, da mentira, da ignorância e do fanatismo” (Ribeiro Sanches, Apud Ferreira, s.d., Prefácio, p. 13) passou-se consigo. Entretanto, tanto Azeredo Coutinho como Ribeiro Sanches, evitaram realçar ou utilizar, decididamente na busca de resolução dos problemas sociais, a história da riqueza do homem em sua origem e, consequentemente, a questão da exploração do homem sobre o homem nas sociedades não igualitárias com a formação das diferentes classes sociais. O primeiro, movido pela cômoda crença religiosa dos direitos desiguais dos homens por desejo de Deus; o segundo, por um inconcebível acomodamento ideológico que, possivelmente, não permitiu que atentasse que ele mesmo (homem extremamente estudioso e produtivo) constituía-se em um forte contraexemplo do que ele pregava a respeito da possível generalizada indolência e preguiça no trabalho (a não serem propagadas) daquele súdito pobre que de algum modo aprendesse a ler e a escrever. Se percebera a questão, a ideia que propugnava sobre a abolição da oferta de escolas em vilarejos com até duzentos habitantes, negando a importância individual e social de tal escolarização para uma nova cultura a ser construída, voltada para o progresso e que visava construir, só poderia ser fruto de sua profunda imersão nos valores da sociedade burguesa.
Para Ribeiro Sanches, ao povo campesino o qual ama a terra de uma forma forte e bastante específica deveria ser-lhes facultada terras para a agricultura os quais tornar-se-iam pequenos capitalistas que se fixariam no local. Mas, não deveria ser-lhe fornecida a possibilidade de apropriação da cultura erudita nem mesmo em sua introdução mínima como o ler e escrever e o contar. A proibição de sua escolarização fora extremamente combatida por este intelectual português que afirmara: “nunca me sairá do pensamento formar um súbdito obediente e diligente a cumprir as suas obrigações, e um cristão resignado a imitar sempre do modo que alcançamos aquelas imensas ações de bondade e de misericórdia” (Ribeiro Sanches, 1759, reedição, p. 125).
A tarefa de formação da bondade e da misericórdia, ensejada nos Estatutos e nas Cartas, provavelmente, não tem sido historicamente uma tarefa fácil; pois, dizia Sócrates, citado mesmo por Ribeiro Sanches, “que era coisa notável que – havendo mestres e escolas para aprender tudo o que era necessário para ser rico, considerado e autorizado – só não conhecia uma onde os homens e os meninos fossem aprender a ser bons" (Apud Ribeiro Sanches, 1759, reedição, s.d., p. 208).
Relacionamento Interpessoal Professor-Aluno
No Seminário de Olinda, o relacionamento interpessoal entre professor e aluno deveria pautar-se no respeito mútuo. Através de uma postura eclética, o aprendizado pautar-se-ia por aulas expositivas e por sabatinas (aos sábados) com o método socrático, ‘aulas-passeio’, estudos nos gabinetes observando efeitos, buscando causas, medindo e calculando e buscando princípios expressos em linguagem matemática.
O professor deveria portar-se diante do estudante de tal modo que fosse estimado o seu louvor e temida a sua repreensão a qual nunca deveria “ser dada com palavras injuriosas, mas com palavras próprias e capazes de infundir-lhe o espírito de virtude, honra e glória. Quando tal repreensão não bastar para coibir os inquietos e despertar os negligentes, o vice-diretor aplicará os castigos conforme a culpa, podendo chegar à sua exclusão do Colégio” (Azeredo Coutinho, 1789, reedição, s.d., p. 16).
Este tipo de relacionamento com o aluno também estender-se-ia a outras autoridades. Os meios para conseguir formar nos estudantes os seus três ofícios (para com Deus, para consigo mesmos e para com os outros homens), visando a boa harmonia da sociedade, seriam o louvor e o prêmio, a repreensão e o castigo. O Reitor, por exemplo, deveria administrar com muita prudência, espírito de imparcialidade e atento para as transgressões leves que são as que insensivelmente estragam a mocidade e fazem com que os súditos, alentados com o descuido do superior, caiam ligeiro nas faltas graves. Cabe, ainda, ao Reitor, com suma prudência, ser mais amado do que temido, pois, como os sujeitos que governa são de fácil compreensão, obediência e docilidade, são dispostos a moverem-se mais pelos impulsos do amor do que do temor (Azeredo Coutinho, 1789)
Este lado afetivo, caracterizado pelo amor aos discípulos, apregoado por Azeredo Coutinho, nos Estatutos, não parece algo a ser inferido como influência, propriamente dita, dos iluministas aqui discutidos. Apresenta-se, ao contrário, como um traço da personalidade (latinidade?) de seu autor, personalidade sobre a qual existem muitas controvérsias na literatura.
Nas Cartas, Ribeiro Sanches extrapola a esfera da simples relação professor-aluno na Escola, acreditando e defendendo que “para se cultivar o ânimo da mocidade, para adquirir a facilidade de obrar o bem e com decência, não basta o bom exemplo dos pais, nem o ensino dos mestres: é necessário que no Estado existam tais leis que premeiem a quem for mais bem criado, e que castiguem a quem não quer ser útil nem a si nem à pátria” (Ribeiro Sanches, 1798, reedição, s.d., pp. 126-127).
Conclusão
Foram exibidas neste presente trabalho diversas sintonias entre o ideário de Ciência e Educação contido nos Estatutos de Fundação do Seminário Episcopal de Olinda, inaugurado em 1800, e os ideários de alguns iluministas portugueses (Século XVIII). Estas sintonias caracterizaram-se de tal forma que não indicam uma igualdade de discursos ou de visões de mundo. São acentuadas, porém, as fortes semelhanças existentes na adoção de uma concepção moderna de ciência experimental, pragmática e utilitarista, baseada na busca da verdade, produzida através da observação neutra dos fatos, na observação dos efeitos dos fenômenos e na busca de suas causas e princípios expressos numa linguagem matemática formal. Igualmente, as concepções educacionais apresentadas guardam uma forte semelhança quanto à base da organização social, aos objetivos, os métodos de ensino e o relacionamento interpessoal entre discípulos e autoridades.
Azeredo Coutinho teve a oportunidade de usufruir do contato com pessoas e idéias de um período cultural português do século XVIII, caracterizado como “um século de compromisso entre valores e preconceitos herdados e as luzes de um progresso a aceitar e incrementar” (Calafate, 1998).
De um ponto de vista do relacionamento professor-aluno, a abordagem metodológica proposta para o Seminário de Olinda constituiu-se em “uma ruptura com os métodos educacionais da colônia que Gilberto Freyre classifica como sádicos, herdeiros da pedagogia das ‘Casas Grandes’, ao lado das ‘pedagogias’ das ‘Senzalas’ (Nogueira, 1985, p. 278) [...] Segundo Freyre, essa pedagogia sádica, “exercida dentro das casas grandes pelo patriarca, pelo tio-padre, pelo capelão, teve com a decadência do patriarcado rural seu prolongamento mais terrível nos colégios de padre e nas aulas dos mestres-régios” (Freyre, Apud Nogueira, 1985, p, 278).
O que causa uma grande curiosidade é como, de fato, aquela proposta educacional, tão ousada, fora verdadeiramente posta em prática. O certo é que muitos dos que por ali passaram, tornaram-se grandes homens; atingindo uma visão de mundo diferenciada e não pretendida pelo seu também diretor de estudos, o Bispo D. Azeredo Coutinho: assumiram uma visão de mundo patriótica e libertadora, só que esta pátria era o Brasil, o lugar onde eles nasceram.
Referências Bibliográficas
ALVES, P. O Seminário de Olinda, In: Lopes, E., Faria Filho, L. & Veiga, C. 500 Anos da Educação no Brasil, Belo Horizonte, Autêntica. 2000.
CALAFATE, P. Filosofia Portuguesa: Sob o Signo das Luzes Instituto Camões. 1998. http://www.instituto-camoes.pt/bases/filosofia/signoluzes.htm Acessado em 20/08/2001.
COUTINHO, A. Estatutos do Seminário Episcopal de N. S. da Graça da Cidade Olinda de Pernambuco, 1789, reedição IN: NOGUEIRA, S. O Seminário de Olinda e seu Fundador o Bispo Azeredo Coutinho, Coleção Pernambucana, Vol XIX, FUNDARPE/Governo de Pernambuco, Recife, 1985.
NOGUEIRA, S. O Seminário de Olinda e seu Fundador o Bispo Azeredo Coutinho, Coleção Pernambucana, Vol XIX, FUNDARPE/Governo de Pernambuco, Recife, 1985.
SANCHES, R. Cartas Sobre a Educação da Mocidade. 1759, reedição (Textos Selectos) Colecção Portugal , No. 25, Edição Organizada por Joaquim Ferreira, Porto, Editorial Domingos Barreira, s.d.
VERNEY, L. A. Verdadeiro Método de Estudar, 1746, reedição, Coleção de Clássicos Sá da Costa, Edição Organizada por António Salgado Júnior, Vol. 3 – Estudos Filosóficos, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1949.
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