terça-feira, 18 de outubro de 2011

Heitor e a Aula de Calorimetria

Alexandre Medeiros


CAUSOS” DE PROFESSORES


Heitor e a Aula de Calorimetria



Ensino já há muitos anos, mas talvez por sorte ou mesmo por obra do destino, nunca tive problemas de indisciplina com meus alunos. Alguns colegas não acreditam quando lhe digo isso, pois geralmente vivem reclamando da indisciplina dos seus alunos. Mas, certamente, já enfrentei alguns alunos “difíceis”; isso já!

Heitor era um desses alunos difíceis e espertos, que gostam de empulhar os professores e naquele dia ele havia me escolhido para ser a sua mais nova vítima. O problema maior é que o danado era mesmo muito esperto, muito estudioso, se bem que mentisse um bocado e dissesse a todo mundo que não estudava quase nada, apenas para pousar de mais inteligente do que já era. O peste, além disso, era atleta, corria, nadava e jogava bola como poucos. Sim, gostava também de provocar os colegas menores para brigar e como o safado batia nos pequenos! Os padres não diziam nada, pois ele era filho de gente rica. As meninas adoravam aquele amostrado enquanto os meninos tinham por ele um ódio incontido, mas disfarçado por puro medo da fera. Ninguém era doido de provocá-lo. Eu via aquilo e ficava na minha; afinal eu apesar de ainda ser jovem, era professor de Física e não podia me meter naquela confusão da meninada.

Pois bem, um dia lá estou dando uma rotineira aula de Física. O assunto era a Calorimetria e eu estava apenas resolvendo alguns problemas bem simples e padronizados, do tipo daqueles que caiam nos exames vestibulares. O problema pedia para calcular uma certa temperatura de um dos corpos em uma mistura e apesar de cheio de contas chatas com muitos decimais – não havia, ainda máquinas de calcular de bolso bem no início dos anos setenta – ele exigia um raciocínio muito simples. A questão era apenas a de trabalhar com a equivalência entre o calor cedido e o calor recebido na mistura dada. E lá estava eu fazendo aquelas malditas contas, quando, de repente, ouço um vozeirão que parecia haver saído de dentro de uma caverna:

– Está errado! O problema está errado!

Eu ouvi aquilo e não tive dúvidas, era o Heitor que estava tentando me pegar. Parei e olhei atentamente para o que já havia acabado de escrever. Tudo me parecia certo, mas como o Heitor não era nenhum bobo, talvez eu houvesse mesmo escrito algo errado. Por isso eu olhei com bastante atenção, mas não vi nada errado, mesmo assim. Parei e disse:

Eu não estou vendo nada errado.

Claro que o senhor não está vendo! Se estivesse vendo não teria errado, disse ele de modo irônico e debochado.

A vontade que eu tive foi de sair no pau com o garoto, mas me contive por dois motivos. Primeiro, porque eu certamente perderia o meu emprego e segundo porque eu quase certamente levaria uma surra do danado que era bem mais forte que eu. Assim sendo, não me restava alternativa senão a de fingir que estava calmo e que a situação estava sob controle. Eu precisava fazer alguma coisa, mas o que? Parei e disse:

Heitor, você poderia me mostrar o que é que está errado?

O peste nem assim deixou barato. Olhou para mim sorridente e disse em voz alta:

Essa é a sua função, professor! O senhor está aqui para nos ensinar e não para aprender.

Pensei outra vez em sair no pau com o danado e com a raiva que eu estava já não tinha mais tanta certeza de que levaria uma surra, mas me controlei, uma vez mais e disse:

Tudo bem, mas, por favor, venha cá e me mostre o que está errado.

Olhe direitinho que o senhor consegue achar o erro, mas vê se não demora muito porque nós estamos perdendo tempo de aula. Foi a resposta “amável” do danado.

Eu olhei desesperadamente para o quadro e subitamente tive uma ideia. O problema era tão simples que eu não via onde pudesse haver me enganado. Por outro lado, o Heitor estava conversando e poderia não haver prestado atenção quando eu havia escrito a variação de temperatura como inicial menos final e trocado corretamente o sinal. Quem sabe se não era apenas aquela bobagem? O Heitor poderia não ter prestado atenção no fato de que eu havia trocado o sinal e pensava que a diferença era necessariamente final menos inicial. Resolvi arriscar todas as minhas fichas naquele palpite, mesmo porque não me restava outra saída. Eu olhei para ele e disse:

– Para não perdermos mais tempo ainda, venha aqui, por favor, e me mostre o erro.

Para não perdermos tempo, não! (Disse sorrindo o danado). Quem está nos fazendo perder tempo é o senhor que está enrolado. Nós apenas temos que fazer um vestibular no final do ano.

– Eu seguro do meu palpite resolvi ir até o fim na minha aposta e dei uma tirada final de humildade forçada:

Está bem Heitor, quem comete o erro é que é responsável pela perda de tempo. Mas, venha cá me mostrar o que está errado.

– As meninas gritavam freneticamente: Vai lá Totô! (Era assim que elas chamavam aquele peste). Os meninos ficaram quietos. No fundo, eu creio que eles estavam do meu lado, mas tinham medo de dizer.

O Heitor levantou-se lentamente, balançou os braços e caminhou com o peito estufado decididamente em direção ao quadro negro. As meninas entraram em polvorosa com seus gritinhos alucinados. Chegara o grande momento, o Heitor iria sacrificar ao vivo e em cores o pobre professor de Física. O Heitor chega, pega um giz vermelho e em lugar de escrever no quadro ele dá um verdadeiro golpe de caratê com o giz escrevendo um grande sinal negativo junto à diferença de temperatura. Eu senti um alívio imediato e uma alegria imensa com aquele gesto. Era agora que eu ia pegar aquele peste de calças curtas e na frente da sua turma. Ele ainda pegou o resto do giz, atirou violentamente no canto da sala e me disse em tom de glória:

Pronto! Faltou o sinal negativo.

Palmas se ouviram, muitas palmas! Ele sorriu e olhou para mim com ar triunfal.

Eu o fitei bem nos olhos e disse:

Mas, Heitor, você nos faz perder todo esse precioso tempo e não havia percebido que eu havia invertido a temperatura final com a inicial?

– O Heitor era chato, mas não era bobo. Ele olhou rapidamente para o quadro e se deu conta, imediatamente, da situação. Percebeu a mancada que havia cometido e disse sem a menor cerimônia:

Desculpe, professor!

Eu não deixei barato:

Não é a mim que você precisa pedir desculpas. É aos seus colegas. Como você bem disse momentos atrás, nós perdemos muito tempo com essa parada e não vamos poder fazer mais outro problema e quem sabe esse problema que eu não vou mais ter tempo de fazer pode até cair no vestibular?

Desculpe! Ele repetiu.

Eu desculpo, mas você não precisa das minhas desculpas, pois você deve passar no vestibular e esse problema não vai lhe fazer falta. Mas e os seus colegas? Será que não vai fazer falta a nenhum deles? Será que você não os prejudicou com esse seu desejo incontido e infantil de afirmação?

Nesse momento, os meninos até então acuados e acovardados se encheram de brios e gritaram quase no mesmo tom:

Senta, bicha! E seguiu-se um rosário de palavrões e impropérios. Até uma ou outra menina me pareceu haver ajudado naquele coro.
O tempo passou e o Heitor não incomodou mais. Tempos depois, muito tempo mesmo, eu encontrei o Heitor num Shopping Center, ele já bem mais velho e de paletó. Para a minha surpresa ele se aproximou e me deu um abraço e relembrou a tal estória.

Professor Alexandre, o senhor não imagina como aquele negócio me fez bem (me disse ele). Eu era muito chato, mesmo. Aquilo era mesmo coisa de criança, como o senhor insinuou. Eu até hoje me lembro daquela minha cena patética e não sei onde o senhor foi buscar tanta calma, tanta presença de espírito.

Eu olhei para o Heitor e já que ele estava sendo sincero, resolvi lhe contar a verdade.

Olhe aqui Heitor, eu vou lhe contar a verdade: Não foi calma, não; foi medo mesmo de levar uma surra.


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