quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A Física com o Circo e o Circo sem a Física: O Van De Graaff e a Bola de Puxar Cabelos

ANO 4 - N. 23 -  JUNHO - 2005



A Física com o Circo e o Circo sem a Física:
O Van De Graaff e a Bola de Puxar Cabelos
Alexandre Medeiros


A exposição “Ciência para Todos” organizada em 2004 pelo MCT no Rio Centro seguia colorida, barulhenta e divertida. As crianças chegavam aos montes e todas elas corriam gritando como loucas em direção ao gerador de Van De Graaff. Elas até faziam fila para terem os seus cabelos puxados pela maquininha.

Chega a hora do almoço e o rapaz que opera o gerador sai para fazer um lanche. Um menino se aproxima de mim e me pergunta:
- Ei, tio! A bola está funcionando?
Eu finjo que não entendi a pergunta, só para deixar o garoto falar mais um pouco.
- Bola, que bola?
- A bola, tio. A bola de puxar cabelos!
É assim que o Van De Graaff é conhecido pela meninada, como a bola de puxar cabelos. E parece, infelizmente, que essa é mesmo a única imagem que é incentivada por aqueles que a operam nos Museus de
Ciência por esse mundo de meu Deus. O rapaz que opera o gerador volta ao seu posto. A fila já está enorme.
Ele grita para um menino ao lado:
- Ei, você aí. Venha cá, suba aqui.
- Não, tio, eu tenho medo.
- Tenha não. Vá, segure firme aqui na bola que eu vou ligar.
De repente os cabelos do guri se levantam. É a glória, a festa, uma gritaria louca.


Pais alucinados tirando fotografias. Nunca vi tanta gente interessada na ciência. Mas será, mesmo? Será a ciência apresentada como um circo ou será apenas o circo? Eu sou um ardoroso defensor da alegria no ensino, de um ensino verdadeiramente divertido e, portanto acho excelente essa coisa de Física com circo. A minha dúvida é quanto ao valor pedagógico do circo sem a Física, do circo pelo circo.
Ouvindo aquela barulheira toda das crianças em torno do gerador, eu começo a pensar na história daquele aparelho e no meu relacionamento pedagógico com ele em todos esses meus longos anos enquanto professor de Física.
O gerador de Van De Graaff é uma máquina eletrostática produzida já tardiamente, em pleno século XX, por Robert Van De Graaff. Desde o século XVIII e principalmente no século XIX, outras máquinas eletrostáticas, como a de Ramsdem, a de Nairne, a de Bonetti, a de Toepler-Holtz e principalmente a de Wimshurst, haviam reinado solenemente como fornecedoras de alta tensão. Elas tiveram, sem dúvida, a sua utilidade nas pesquisas científicas e foram até usadas algumas vezes como auxiliares na produção de raios X.


A sua função era simplesmente a de elevar o potencial das cargas elétricas ao nível necessário em um certo experimento. Entretanto, todas elas foram, já no século XIX, completamente ultrapassadas pelas bobinas de indução, que por sua vez cederiam mais tarde os seus lugares às modernas fontes de tensão estabilizadas.
Assim, quando o gerador de Van De Graaff foi inventado, na primeira metade do século XX, a sua função não poderia ser mais a de apenas um simples gerador eletrostático nos termos comuns, mas a real intenção era a de ser um dos primeiros aceleradores de partículas do mundo. Entretanto, como acelerador de partículas, ele rapidamente se viu também ultrapassado por outras máquinas bem mais poderosas e sofisticadas.

Assim sendo, o Van De Graaff virou um autêntico anacronismo, um dinossauro vivo nos laboratórios de Física. Ele não se servia bem como um acelerador de partículas e não era mais necessário enquanto uma verdadeira máquina eletrostática. Seu aspecto imponente, contudo, com aquela esfera reluzente em cima de um pedestal, com a sua correia comprida transportando as cargas “geradas” por atrito e principalmente com as centelhas que podia facilmente produzir em ambientes sem grande umidade, fizeram-no o rei dos palcos. De um aparato científico, ele foi reduzido a um mero objeto de circo.
Certamente, muitos dos seus apaixonados fãs, dentre eles vários professores de Física, poderão objetar contra esta minha opinião. Eles poderão argumentar que o Van De Graaff é importante para o ensino da eletrostática. Eu, entretanto, tenho cá as minhas dúvidas quanto a isso, ao menos em relação ao seu custo/benefício, mas sei muito bem que o dito instrumento se serve para ilustrar brilhantemente algumas implicações da lei de Gauss.
De todo modo, a eletrostática é um assunto realmente difícil de se ensinar. A complexidade matemática inerente ao tema não o coloca entre os preferidos no ensino médio. E não poderia ser diferente. Muitos advogam, ao meu ver corretamente, que o ensino da eletricidade poderia se iniciar pelo estudo da corrente elétrica. É o que fazem meus amigos Luiz Alberto e Marcelo e o GREF, por exemplo.

Mas, há sempre aqueles professores que não admitem um laboratório de Física se nele não estiver contido um Van De Graaff. O danado é mesmo espetaculoso, solta raios, puxa cabelos e coisas assim. Quanta utilidade desperdiçada! A possibilidade da ilustração e da discussão da lei de Gauss, coitadas, são substituídas pelos inocentes choquinhos. Nunca vi alguém dar uma demonstração em um Museu de Ciência com um Van De Graaff que não fosse apenas para levantar os cabelos de algum deslumbrado. E eu conheço muitos museus de ciência por esse mundo afora. Para variar, além de puxar cabelos, a maquininha também é utilizada corriqueiramente para dar choques em grupos de adolescentes unidos em forma de círculo.
Outrora, no século XVIII, o abade Nollet fazia o mesmo na corte francesa dando choquinhos com outras máquinas eletrostáticas em crianças e em senhoras da nobreza que se sentiam posteriormente excitadas.


Mas, isso foi no século XVIII. Entretanto, o fascínio do espetáculo circense dos tais choquinhos e não exatamente a aprendizagem verdadeira de quaisquer conceitos físicos é que me parece reger a orquestra do espetáculo.
Certa vez, já faz um bom tempo, fiz um questionário e apliquei com todos os alunos do curso de Física da Universidade. Coloquei, dentre outras, uma pergunta muito simples: Qual a parte da Física que você julga mais importante? Para que não houvesse dúvidas, coloquei também: Qual a parte da Física que se deveria dar o maior destaque no ensino fundamental e médio?
Claro, essas são perguntas simples de fazer e muito difíceis de responder, mesmo porque todas as partes da Física têm o seu devido valor. Mas, então, se eu pensava assim, por que perguntei semelhantes coisas?
Porque no fundo de minha alma eu desconfiava que os estudantes não pensavam assim. E os resultados espelharam muito bem essa situação. Em ambas as perguntas a campeã absoluta de importância foi a Mecânica.
Praticamente todos os alunos achavam que ela era a parte vital do curso. E eu confesso que há bons argumentos para se pensar assim, afinal a Mecânica é uma das partes mais antigas da Física e a que melhor se apresentava organizada no século XIX. Não é por outra razão que a filosofia do mecanicismo fez escola no século XIX.
Por outro lado, foi a sua superação que possibilitou o aparecimento da Física Moderna. Mas, isso é uma outra história. Voltando ao questionário, alguns poucos estudantes de Física escolheram o Eletromagnetismo, outros tantos a Termodinâmica, mas absolutamente nenhum escolheu a Eletrostática.
O meu questionário ainda perguntava se fosse necessário retirar algumas partes do programa de um curso de Física de nível médio, devido à falta de tempo, quais deveriam ser as duas primeiras partes a serem retiradas. A campeã disparada foi a Cinemática, seguida bem de perto pela Eletrostática.
Esse resultado me parece muito interessante, especialmente pelo pouco valor creditado à Eletrostática e também pelo paradoxo de que uma parcela daqueles mesmos alunos valorizava tanto, como veremos adiante, o gerador de Van De Graaff.
Eu perguntei, alguns meses depois daquele primeiro questionário geral, aos meus alunos no início de um curso de Instrumentação para o Ensino de Física, a seguinte pergunta: Se vocês ensinassem em uma escola e o diretor lhes dissesse que vocês poderiam comprar dez instrumentos científicos para o laboratório, quaisquer que fossem eles, não importando o preço, mas apenas a sua utilidade pedagógica, o que é que vocês escolheriam?
Uma condição que eu impus foi a de que eles justificassem o pedido da compra apontando o uso a ser feito daquele dispositivo. A segunda e última condição era a de que aqueles seriam os dez únicos instrumentos do laboratório e que nenhum outro instrumento mais seria permitido, ainda que pudesse ser adquirido sem grande custo.
O desafio, portanto, era ver o quanto eles saberiam avaliar a importância do que iria ser escolhido. Uma boa escolha deveria, certamente, reunir experimentos que fossem fundamentais na compreensão do corpo da Física, deixando de lado tudo aquilo que fosse apenas acessório. Deste modo, seria natural que não aparecessem em uma tal lista aparelhos, por exemplo, como uma máquina de Masson, um instrumento antigo utilizado para demonstrar o paradoxo hidrostático. Embora ela tivesse inegavelmente a sua importância, ela
estava longe de se constituir em algo fundamental.
Vários outros exemplos me vinham à cabeça e com eles a mesma indagação: Qual a sua importância no quadro conceitual da Física? Eles eram acessórios ou fundamentais? Confesso que essa está longe de ser um pergunta fácil e que ela depende muito do ponto de vista daquele que vai fazer a tal escolha. Depende, também, da sua visão a respeito da própria estrutura da Física, da sua compreensão, profunda ou superficial, daquilo que valeria ser escolhido. Esse era exatamente o ponto a ser avaliado.
Na minha mente, eu já tinha alguns experimentos favoritos. Dentre eles estava o simples e importantíssimo experimento da dupla fenda de Young.


Um experimento singelo, mas absolutamente fundamental na discussão da natureza da luz. Um outro preferido meu era o experimento do plano inclinado de Galileu.


E eu gastaria assim boa parte dos recursos disponíveis. Aquele experimento, por exemplo, evidenciava também a genialidade de contornar a dificuldade de se mensurar os tempos com a solução de medir as distâncias percorridas. E a discussão que poderia se seguir sobre o significado a ser atribuído à progressão aritmética encontrada seria de vital importância na compreensão da Mecânica.
Outro experimento que eu escolheria seria uma simples balança inercial: duas hastes presas em uma mesa, ligadas por uma terceira haste com um orifício onde se colocaria diferentes massas e que seriam então postas a oscilar.


Isso não apenas colocaria em jogo a segunda lei de Newton, como também permitiria que eu pudesse discuti-la utilizando o conceito de massa inercial, sem apelar muito precocemente para o conceito de massa gravitacional. E, mais tarde, até se poderia fazer uma discussão sobre a igualdade das mesmas na Física Moderna.
Da Eletricidade e do Magnetismo, eu escolheria, por exemplo, o célebre experimento de Oersted, que deu início à ligação desses dois territórios e alguma máquina de indução eletromagnética que pudesse evidenciar a relação no sentido inverso: magnetismo gerando eletricidade. Aquilo, para mim, seria absolutamente fundamental.


Quem duvidar disso pode se perguntar como é gerada a energia elétrica que chega todos os dias às suas casas. Será algum Van De Graaff gigantesco instalado em Itaipu? Certamente que não! Entretanto, o Van De Graaff, tem inegavelmente a sua utilidade na ilustração, ainda que geralmente cara e espetaculosa (não, espetacular), da lei de Gauss. E isso, certamente, não é pouco, pois a lei de Gauss é uma das quatro leis de Maxwell, o núcleo duro do Eletromagnetismo.

Mas, será que quem optava por adquirir um Van De Graaff sabia mesmo disso? Resolvi colocar essa questão à prova. E será que, em caso negativo, seria possível despertar nos mesmos essa consciência? Por que, afinal, o circo pelo circo não me parece uma boa justificativa pedagógica.
Eu tinha exatamente 12 alunos na disciplina de Instrumentação. Pode parecer brincadeira ou uma mera coincidência, mas no topo das suas listas de instrumentos escolhidos, algumas delas com menos de dez nomes, pois os seus autores não haviam conseguido se lembrar de tantos experimentos de Física assim reinava absoluto quem?
Ele mesmo, o gerador de Van De Graaff, que muitos até escreviam Van der Graf, com um r a mais e sem as letras dobradas. É como se o som daquele r emprestasse uma imponência ainda maior à tal maquininha de puxar cabelos.
Outra coincidência: a falta das justificativas pedidas para a aquisição dos aludidos instrumentos. Um ou outro estudante havia colocado ao lado do desejado Van De Graaff a duvidosa justificativa: ensinar eletrostática.
Mas, como? Essa foi a minha pergunta seguinte, desta vez de viva voz em plena sala de aula.
- Tudo bem, suponham que eu sou o diretor da escola. Eu comprei o Van De Graaff que vocês me pediram. Está aqui! O que é que vocês vão ensinar com ele? Quais os experimentos que vão realizar? O que pretendem demonstrar com ele?
Dito isso, eu sempre trazia o nosso Van De Graaff para a cena. Colocava o excelente Van De Graaff alemão da Leybold em cima da bancada e convidava um a um os meus estudantes de Instrumentação para o Ensino da Física.


- Está aqui o dito instrumento que vocês queriam e aqui também está um bocado dos seus acessórios.
Dizia isso e abria a mala em frente deles. Na malinha havia uma porção de objetos esquisitos que os meus alunos, possivelmente, nunca tinham visto antes. Mas, mesmo assim, supostamente, era aquilo mesmo que eles queriam usar.

- E então, gente, quem se oferece para ser o primeiro? Para que é que servem essas quatro campainhas? E esse palhacinho, aqui em cima dessa haste, para que será?
E essas duas bolas que parecem de bilhar, mas que são leves como as de ping-pong dentro dessa bacia de metal? O que é que a gente faz com elas? O que a gente quer demonstrar com tudo isso?
Silêncio! Um silêncio de doer.
Vamos lá, gente! Suponham que eu seja o diretor da escola e que o emprego de vocês esteja a perigo.
Vocês pediram para comprar esse negócio e eu comprei. Eu quero saber para que serve essa ventoinha em forma de agulhas.
- Como é? Se vocês pediram para comprar é porque isso deve ser importante.
De repente, um aluno mais corajoso levanta o braço e diz com sinceridade:
- Olhe aqui Alexandre, a gente não precisa dessa mala aí não! Basta o gerador. Essa mala só tem besteira. O importante é o gerador em si mesmo.
Eu, atônito, olho para a turma e pergunto: Todos concordam?
Os meus alunos balançam a cabeça dizendo que sim. O importante é apenas a máquina maior, ou como dizem as crianças: a BOLA. A BOLA que dá choques, a BOLA DE PUXAR CABELOS. Eu atônito com aquela cena, pois afinal estava diante de futuros professores de Física, me questiono sempre sobre o valor da ciência apenas como um circo.
- Venha cá, meu amigo, disse eu, para um dos meus estudantes de Física. Por favor, ligue esse instrumento e use-o com os seus colegas.
Dito isso me afastei do instrumento e esperei que ele se aproximasse. O condicionador de ar estava funcionando no frio máximo, o ambiente estava bem seco e, portanto, tudo deveria correr bem. O estudante se aproxima e liga o gerador. Espera um pouco e aproxima a sua mão da esfera.
- Já está puxando! Já está puxando, venham ver!
Todos se levantam excitados e começa uma autêntica festa. Eu me afasto ainda mais e fico admirando a brincadeira. Uma estudante é logo convidada pelo meu aluno para levar choques. Ele se prepara para fazer a célebre demonstração, tão importante no imaginário de muitos professores de Física. Todos aguardam ansiosamente a “mágica” que irá acontecer. Eu olho e antevejo o fracasso. O cabelo grande e pesado da menina está excessivamente oleoso, brilhando contra a luz da sala. Ótimo, penso eu. Vamos esperar e ver o que eles dizem.
Ato contínuo, com o fracasso do “experimento” os meus alunos se viram para mim com aquela cara de socorro.
- Professor, diz o mais vivinho deles, não está funcionando!
- O que não está funcionando?
- O Van DER Graf!
Eu sorrio e lhe pergunto para incentivar o seu raciocínio:
- Mas por que será? Como é que ele funciona, afinal?
As explicações que recebo parecem saídas das páginas de um livro:
- Tem uma correia, ela faz um atrito aqui em baixo e as cargas são produzidas. Elas são transportadas pela correia e chegam à esfera que assim fica eletrizada.
Mas, eu sou um socrático, acredito firmemente na maiêutica como um recurso pedagógico e não me dou por vencido facilmente.
- E a lei de Gauss? Pergunto eu sem explicar mais nada. O que é que a lei de Gauss diz a esse respeito?
- Não estou entendendo! Diz um.
- Nem eu, diz um outro.
- O que é que a lei de Gauss tem a ver com isso? Diz um terceiro.
- Tudo, respondo eu. Tudo!
- Bem, que eu saiba, diz o estudante que ligou o instrumento, a lei de Gauss serve para se calcular a expressão matemática dos campos elétricos. Assim, de um anel, de um plano carregado, de uma haste, assim.
Eu penso cá com os meus botões: é o vício de uma formação formalista que foi introjetada nesses
jovens. Mas, eu estou decidido a não deixar nada barato e vou à luta:
- Isso mesmo, meu filho, isso mesmo! Mas, é só isso? Para possibilitar isso que você está dizendo, ela não estabelece nenhuma relação fundamental entre a distribuição de cargas e o campo criado?
- Claro, ela é isso. É aquele negócio do fluxo através de uma superfície imaginária.
- Pois bem, – insisto eu – por que o carregamento se dá pelo lado de dentro da esfera?
- Silêncio.
- Eu não estou entendendo a sua pergunta, professor, diz um estudante até então calado.
- Veja! Vocês acham que o tamanho da esfera do Van De Graaff tem alguma importância?
- Claro! Quanto maior, melhor.
- Por que? Pergunto eu.
- Porque quanto maior o raio da esfera, maior o valor do potencial que pode ser atingido.
- Eu devolvo, de imediato: Como é que você sabe disso?
- Porque o potencial é inversamente proporcional ao raio da esfera.
- Então, parece haver aí uma contradição. Você me disse que quanto maior o raio da esfera, maior seria o potencial a ser adquirido, mas agora me disse que esse potencial é inversamente proporcional ao raio da mesma. Como é que é, então?
- Uma garota de óculos redondos como os de John Lennon vai ao cerne da questão: é que pelo fato do potencial da esfera ser inversamente proporcional ao raio da esfera e o raio haver aumentado, a esfera vai ter de ganhar mais cargas para atingir aquele mesmo potencial.
- OK! Digo eu. Mas, então, a questão não é que o potencial da esfera maior fique maior, como disse o meu amigo aqui ao lado. A questão é que... Como é?
- A menina volta ao ataque. Já sei, professor. Não é o potencial que aumenta com o aumento do raio, mas é a quantidade de cargas que ela pode encerrar para atingir aquele mesmo potencial.
- Eu devolvo, mais uma vez: E qual é o problema do potencial não poder aumentar indefinidamente?
- O rapaz, que ligara o instrumento e ouvira atentamente a argumentação da sua colega, se apressa em falar: se o potencial aumentar demais, o valor do campo elétrico pode atingir o valor da rigidez dielétrica do ar e aí, tchau!
- Essa eu gostei de ouvir. Todos entenderam? Pergunto eu.
- Os alunos balançam a cabeça dizendo que sim, mas eu não estou ainda seguro de que eles estejam sendo sinceros e pergunto: É uma vantagem ou uma desvantagem que o gerador tenha uma cabeça grande?
- Um aluno, mais atrevido, lá no fundo, refaz a minha pergunta ao seu modo: vocês preferem o de cabeça grande ou pequena?
Todos riem à vontade e eu finjo que não entendo a brincadeira; mas que o cara foi espirituoso, não resta a menor dúvida. O clima fica mais descontraído e um outro aluno arrisca uma observação:
- Professor, eu acho que é melhor botar dentro. É isso que ensina a lei de Gauss.
Não dá para discutir! Apesar da piada maliciosa é nisso mesmo que a lei de Gauss implica. Mas, eu não me contento com o circo, eu aceito o circo como diversão, mas eu quero que o estudante justifique essa sua nova versão divertida da lei de Gauss, a que diz que é melhor botar dentro do que fora. E com a maior cara de leso, fingindo não estar entendendo a brincadeira, eu lhe pergunto:
- Mas, por que você me diz que a lei de Gauss garante que é melhor botar dentro do que fora?
- Animado com o clima, o menino responde brilhantemente: É uma conseqüência da lei de Gauss. É que no interior da esfera condutora eletrostaticamente carregada o campo elétrico tem que ser zero.
- E daí – insisto eu – e, daí?
- Daí, professor, que as cargas que a correia entrega à esfera por dentro correm imediatamente para a superfície externa.

- Tirando a palavra imediatamente, que você falou, eu gostei muito do restante da sua resposta. E, então, o que é que a lei de Gauss tem a ver com isso tudo que vocês disseram sobre esse instrumento? Por que a correia toca o instrumento na parte interna e não na parte externa?
- Por causa da lei de Gauss, porque o carregamento interno é mais eficiente, gritam quase todos, do seu modo, sorrindo.
- Muito bem! Resumindo: o carregamento deve ser interno por causa da lei de Gauss, porque se o campo elétrico no interior de um condutor eletrostaticamente carregado tem que ser zero, então todas as vezes que a correia entregar a sua carga transportada lá de baixo, ela, a correia, encontrará sempre o interior da esfera a um potencial constante. E deste modo, a transferência será bem mais fácil, certo?
- Certo!!! Gritam todos.
- Então, qual é o problema de se tentar carregar por fora?
- Botar por fora nunca é bom negócio, professor. A lei de Gauss explica isso.
- Eu, já no clima da brincadeira dos alunos, sou mais claro: Deixe de brincadeira e responda o que eu lhe perguntei.
- A menina de óculos redondos retoma a discussão de um modo mais sério: porque se o carregamento for externo da primeira vez a coisa funciona, mas depois que o potencial da esfera for subindo o carregamento vai ser impossível. A passagem das cargas entre a correia e a esfera depende da diferença de potencial entre esses dois corpos.
- Ouviram, seus marmanjos? Digo eu, para os rapazes. Aprendam! Mas, agora que nós já discutimos em rápidas passagens, a Física desse instrumento, me respondam por que será que ele não puxou os cabelos da colega aqui ao lado?
Infelizmente, a questão prática colocada parece fazer as coisas voltarem à estaca zero.
- Dessa vez não funcionou, diz um candidamente. Por que será?
- Muito bem, digo eu. E por que dessa vez não funcionou?
O meu aluno, muito vivo, me responde de bate-pronto:
- Essa pergunta fui eu quem fiz ao senhor.
E todos acham a maior graça. Eu aprendo mais essa: contra possíveis e incômodos questionamentos construtivistas sempre existe uma piadinha que resolve a situação.
- Tudo bem, mas se você me pediu para comprar o instrumento, deveria saber, e aqui me permita voltar a ser o diretor da sua escola, que ele às vezes pode não funcionar. Quando é que isso acontece?
- A resposta que ouço também vem dos livros: quando o ar estiver seco. Não pode haver umidade no ar. Hoje choveu e está muito úmido. Todos balançam a cabeça em sinal de assentimento.
- E para que serve o condicionador de ar ligado? – Pergunto eu.
- Para resfriar o ambiente, não é professor? Para retirar o calor do ambiente, me responde uma outra aluna lourinha.
- Muito bem! Mas ele serve só para isso? Ou melhor, será que ele serve prioritariamente para isso?
- Serve também para retirar a umidade do ar, diz um estudante no canto da sala.
Eu me viro para a aluna lourinha e digo a ela: por favor, minha filha, dê uma olhada lá fora embaixo do aparelho de ar condicionado. Ela se levanta, abre a porta e dá uma olhada e volta.
- E, então, o que você viu?
- Está tudo molhado. Está pingando água do ar condicionado.
- E de onde você acha que vem essa água?
- Não sei, deve ser do radiador do aparelho que deve estar furado.
Eu me viro, atônito, para o estudante do canto que havia falado da umidade do ar.
- E você, o que acha disso?
- Não! O pingo é do próprio aparelho. É a água daqui de dentro que ele colocou para fora.
Eu dou um sorriso de felicidade. Ainda existe vida inteligente no planeta Terra! Olho para a minha aluna que também esboça um sorriso encabulado. Eu a incentivo: está vendo como funciona esse aparelho? E ele está ligado aqui já faz um tempão. O que é que você acha? Será que aqui dentro ainda está muito úmido?
- Não, eu acho que não, diz ela, ainda encabulada.
- Muito bem, isso mesmo. Viro-me para o restante da turma e pergunto: E então, como é gente? Quem é o culpado? Por que o Van De Graaff não está funcionando?
- Não sei, professor, responde um galeguinho de olhos verdes na fila da frente. Esse negócio de fazer experimento em sala de aula tem isso. Quando não dá certo, a gente não aprende nada.
Eu não acredito no que estou ouvindo. Depois de toda a nossa discussão, ouvir uma dessas. Mesmo, assim, eu vou à carga com o nosso futuro professor de Física.
- E agora, neste exato momento em que o Van De Graaf não parece estar funcionando, você está ou não aprendendo?
- Eu estava aprendendo, mas quando ele quebrou, eu deixei de aprender, claro.
- E quem disse a você que ele está quebrado?
- Porque ele não levantou o cabelo da menina aí.
- E quer dizer que a função do Van De Graff é a de levantar cabelos? Ele só está funcionando se levantar cabelos. É isso?
- Não, se ele der choques também!
- Quem foi que lhe ensinou isso? Eu lhe ensinei isso?
- Não, mas eu vi no museu. O do Museu puxa cabelo, o daqui não. Lá eu aprendi e aqui nós só estávamos conversando, porque o instrumento parece que está quebrado.
Eu fico atônito com a concepção de Educação do meu estudante, mas me controlo e vou em frente:
- Pois bem, vem cá, você mesmo. (Eu noto que o cabelo do rapaz é longo e está mais seco do que o da menina, e então arrisco). Segura aí na tal bola, como você chama.
Ligo o instrumento. Os cabelos do rapaz sobem e os colegas gritam admirados.

- Eu volto ao ataque: E então, o que é que estava quebrado?
- Sei lá! Eu acho que consertou.
- A menina de óculos redondos volta a entrar em cena: Eu não queria dizer, mas foi o cabelo dela que estava molhado. Não pode haver umidade nem na sala nem no local onde se pretende eletrizar.
- Muito bem!
- E então, como é, vocês acham que a gente só aprende Física quando o experimento dá certo, quando dá o resultado esperado?
- Não, professor! A discussão é melhor ainda.
- Pois bem, vamos ver um outro experimento. Eu pego o parafuso que regula o atritador de feltro do gerador e giro-o levemente, sem que os alunos percebam. A pressão fica bem reduzida e o atrito bem menor. Eu sei que dificilmente ele funcionará. Vamos ver, por favor, você aí, venha cá e ligue o gerador.
- Um aluno se adianta, liga o gerador e nada acontece. Nem os cabelos do braço são atraídos.
Ele afirma: Parece que agora quebrou mesmo. Não vai dar mais para fazer o experimento.
- Aí é que vocês se enganam. Esse já é o experimento. Descubram o que está ocorrendo, testem as suas hipóteses e coloquem o danado para funcionar.
Meus pensamentos e as minhas lembranças sobre o Van De Graaff e o seu uso são bruscamente interrompidos. Volto à cena da Exposição do Rio Centro. Uma menininha se aproxima de mim e pergunta:
- Ei, tio, o moço aí disse que a BOLA não está mais funcionando, é verdade? Eu queria levar um choque.
Eu olho para o colega ao lado operando o gerador e ele pisca o olho. Já entendi tudo, o circo vai dar uma pausa, depois virão novos choques, muitos cabelos em pé, algumas perguntas e muitas respostas evasivas.
É por isso que gosto de diferenciar a Física com circo do circo sem a Física.

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