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quinta-feira, 17 de novembro de 2011

A Primeira Lei da Termodinâmica e o Longo Mergulho das Focas e Baleias

Alexandre Medeiros (PhD, University of Leeds – Professor de Física e Astronomia, UFRPE)

SÉRIE DE TEXTOS: A FÍSICA NO DIA A DIA
AUTOR: Alexandre Medeiros
TÓPICO: PRIMEIRA LEI DA TEMODINÂMICA
TÍTULO DO ARTIGO: A PRIMEIRA LEI DA TERMODINÂMICA E O LONGO MERGULHO DAS FOCAS E BALEIAS
Por que as baleias e as focas conseguem mergulhar por longos períodos de tempo?


Esta questão está diretamente relacionada com outra sobre a qual já escrevi um comentário: a cor das carnes das galinhas e a presença da mioglobina em seus tecidos, responsável pela retenção do oxigênio nos tecidos. Nos mamíferos aquáticos, a mioglobina é normalmente encontrada em grande quantidade. É o que ocorre com as focas, as baleias, os golfinhos e as morsas ou leões-marinhos. Quando comparados aos mamíferos terrestres, esses animais aquáticos possuem mais glóbulos vermelhos e também alvéolos pulmonares mais desenvolvidos e em número maior. E, nos músculos, a abundante presença de mioglobina garante um formidável suprimento de oxigênio. Isso faz com que eles possam mergulhar e permanecer submersos na água por longos períodos de tempo.
Mas, onde entra a Física nessa questão?
É que o oxigênio acumulado na mioglobina dos tecidos é o resultado direto do contínuo e enorme esforço muscular (trabalho) que tais mamíferos exercem em sua faina diária. É a queima (combinação com o oxigênio) dos alimentos ingeridos que propicia a liberação da energia interna contida nas suas ligações químicas. Deste modo, há uma equivalência entre o trabalho realizado por tais mamíferos e a energia contida no sistema composto pelo oxigênio retido na mioglobina e os alimentos ingeridos pelos mesmos. Em outras palavras: o fenômeno ocorre como uma consequência natural da Primeira Lei da Termodinâmica, o nosso bom e velho Princípio de Conservação da Energia.


 
PARA CITAR ESTA FONTE: Medeiros, Alexandre. A Primeira Lei da Termodinâmica e o Longo Mergulho das Focas e das Baleias. Física e Astronomia_Alexandre Medeiros, BLOG. http://alexandremedeirosfisicaastronomia.blogspot.com/2011/11/primeira-lei-da-termodinamica-e-o-longo.html. Acessado em 17 de Novembro de 2011. (atualizar a data)

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

A Primeira Lei da Termodinâmica e a cor das carnes da galinha

Alexandre Medeiros (PhD, University of Leeds – Professor de Física e Astronomia, UFRPE)

SÉRIE DE TEXTOS: A FÍSICA NO DIA A DIA
AUTOR: Alexandre Medeiros
TÓPICO: PRIMEIRA LEI DA TERMODINÂMICA E ENERGIA INTERNA
TÍTULO DO ARTIGO: Por que as galinhas possuem tanto carnes brancas quanto carnes escuras?


A diferença na coloração clara ou escura das carnes da galinha deve-se a um pigmento presente nos músculos da ave que é denominado mioglobina. Ele é uma pequena proteína relacionada com a hemoglobina; mas, enquanto a hemoglobina carrega o oxigênio no sangue, a mioglobina retém esse mesmo oxigênio no interior das células musculares possibilitando a produção da energia indispensável para a contração muscular. A célula muscular é plenamente capacitada à produção de trabalho mecânico intermitente, realizado com o consumo da energia química.

Em uma situação de grande atividade muscular, quando trabalho está sendo realizado, os músculos necessitam de muita energia e essa energia é obtida pela “queima” (reação com o oxigênio) do alimento ingerido pelo animal, propiciando assim a liberação da energia interna acumulada em suas ligações químicas.
Se o músculo for usado repetidamente e por longos períodos de tempo, aumenta a quantidade de mioglobina no tecido do qual ele é composto. É por isso que as aves migratórias, como patos e gansos, têm carne mais escura nos músculos do peito – os músculos usados para voar. As coxas da galinha também apresentam carne escura, porque elas usam mais os músculos das pernas do que os do peito. A carne das asas, porém é branca, claro, porque as galinhas não voam.


PARA CITAR ESTA FONTE: Medeiros, Alexandre. Primeira Lei da Termodinâmica e a cor das carnes da galinha. Física e Astronomia_Alexandre Medeiros, BLOG.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Problemas com os Primeiros Termoscópios

Alexandre Medeiros (PhD, University of Leeds – Professor de Física e Astronomia, UFRPE)

Problemas com os Primeiros Termoscópios
Há registros escritos de que Jean Rey (1582-1645), médico francês, propôs, com efeito, em 1631, a modificação do termoscópio de Galileu. A modificação consistia apenas em inverter o instrumento de Galileu, enchendo a ampola com água e mantendo-a na parte inferior com o tubo voltado para cima. Essa simples inversão, no entanto, mudava por completo o funcionamento do aparelho. Agora era a dilatação da própria água, e não mais de uma certa massa de ar, que faria a coluna líquida subir ou descer. Em outras palavras, a substância termométrica deixava de ser o ar para ser a água.
Numa carta escrita ao padre e matemático francês Marin Mersenne (1588-1648), datada de 1 de janeiro de 1632, Rey escreveu: "Para fazer uso dele, eu o coloquei ao Sol e algumas vezes nas mãos de um paciente com febre, tendo enchido completamente, exceto o tubo; o calor expandindo a água faz com que ela suba mais ou menos, de acordo com o maior ou menor calor".
Note-se a imprecisão na linguagem utilizada por Rey, na qual a distinção entre calor e temperatura ainda não se fazia presente àquela  época.
Observe-se também que o tubo, no termoscópio de Rey, continuava aberto e, portanto ainda sob a influência da pressão atmosférica, mesmo que esta influência fosse então muito pequena, pois os líquidos, diferentemente do ar, são praticamente incompressíveis.  A evaporação do líquido, por outro lado, era um inconveniente adicional ocasionado igualmente pela extremidade aberta do tubo de vidro.
Alguns historiadores têm creditado ao próprio Galileu, embora sem registros históricos precisos, a primazia de ter não apenas antecipado a contribuição de Jean Rey, mas também de ter, por volta de 1612, selado a parte superior do tubo de vidro. Galileu teria, portanto, segundo esta versão, enchido com água a ampola do seu instrumento e vedado a extremidade superior do tubo, até então aberta.
Ainda que uma tal versão não pareça ter o devido respaldo histórico, caberia salientar que a tentativa de utilizar a água como substância termométrica teria conferido ao novo instrumento fechado de Galileu uma performance decepcionante. Apesar de poder, com tal hipotética modificação de selagem do tubo, evitar a interferência da pressão atmosférica, a água enquanto nova substância termométrica em substituição ao ar seria extremamente problemática. Com efeito, a água dilata-se muito pouco em comparação, por exemplo, com o álcool, tornando as leituras difíceis e apresentando irregularidades nas proximidades da temperatura de seu congelamento.

O que parece um fato histórico bem documentado, é que o Duque Ferdinand II de Médici (1610-1670), discípulo de Galileu, construiu em 1641 um termoscópio Segundo as linhas descritas acima, utilizando, além disso, álcool, ao invés de água, como substância termométrica. O álcool apresentava  uma série de vantagens em comparação com a água, nem todas, no entanto,  percebidas à época. Logo de início, tornou-se claro que o álcool congelava a uma temperatura bem mais baixa que a água, possibilitando a utilização do instrumento em invernos rigorosos.
Além disso, o álcool mostrava-se mais expansivo que a água, ou seja, dilatava-se mais para uma mesma elevação de temperatura, tornando assim as leituras mais precisas. Neste sentido, o álcool constituía-se numa opção intermediária entre o ar, que se dilatava muito, e a água que se dilatava pouco. Após os trabalhos de Evangelista Torricelli (1642), uma vez estabelecida a necessidade de evitar a utilização do ar devido às influências da pressão atmosférica, o álcool passou a ser bem cotado enquanto substância termométrica a ser adotada.
Outra vantagem, não percebida à época, seria o fato do álcool dilatar-se mais uniformemente que a água, ou seja, de modo aproximadamente mais linear. Este fato, no entanto, só viria a ser completamente apreciado no século XVIII. Este é um detalhe que frequentemente não nos damos conta ao utilizarmos um termômetro. O que, no entanto, nos dá  o direito de dizermos que quando a coluna líquida de um termômetro está a meio caminho entre as marcas 0o  e 100o, a temperatura é de 50o? Isto pode parecer trivial, mas carrega, na verdade, o pressuposto da linearidade da dilatação do líquido, ou seja, da substância termométrica. Caso a dilatação não fosse linear, o líquido atingiria a metade daquele comprimento entre 0o e 100o numa temperatura não necessariamente igual a 50o. Historicamente, a dilatação linear da substância termométrica com a elevação da temperatura permaneceu, por muito tempo, como um pressuposto tácito, oculto, na construção dos termômetros.

Apenas em 1723, o matemático inglês Brook Taylor (1685-1731), mais conhecido pelo seu estudo das séries matemáticas, viria a tornar explícito que o óleo de linhaça, uma substância termométrica usual àquela época, dilatava-se linearmente com o recebimento de calor. A água apresentava ainda o problema adicional de sua dilatação anômala próximo do ponto de fusão do gelo, quando uma elevação de temperatura provocava uma contração ao invés de uma esperada dilatação.
Esta dilatação irregular da água, no entanto, não viria a ser, inicialmente, um fator determinante na utilização dos termômetros a álcool, pois a própria existência de tal fenômeno permaneceria por muito tempo como matéria de disputa. Embora apontada por Robert Hooke desde a metade do século XVII, e reafirmada pelo geólogo francês Jean De Luc em 1776, a referida irregularidade na dilatação da água só viria a ser aceita após a realização do célebre experimento do químico escocês Thomas Hope, em 1805.
Um melhoramento fundamental, introduzido por Ferdinand II, foi fechar a extremidade, até então aberta, do instrumento, impedindo assim simultaneamente a evaporação do álcool e a influência das variações da pressão atmosférica. Seu instrumento já não era mais um termobaroscópio, como o de Galileu, mas sim um verdadeiro termoscópio, pois não apresentava variações com a pressão atmosférica, pelo fato de ser lacrado. Rigorosamente falando, no entanto, não era ainda um termômetro, pois não continha uma escala confiável baseada em pontos fixos bem determinados. A denominação do instrumento como um  termômetro, no entanto, tornou-se dominante, ainda que tal nomenclatura não nos pareça, atualmente, correta.
A questão da escolha de uma escala conveniente para a calibração dos termômetros era algo bastante complexo. Para começar, a existência de temperaturas constantes nas mudanças de fase não era ainda um fato bem estudado. Em 1668, Hooke defendeu a ideia de que poderia ser observado que em todos os corpos, as temperaturas de fusão e ebulição, são constantes. Tal ideia, sabemos hoje, não corresponde exatamente à realidade, pois  mesmo deixando de lado a variação com a pressão, apenas as substâncias cristalinas apresentam uma temperatura definida de transição de fase, ou seja, não há ponto fixo de mudança de fase para substâncias amorfas. Ainda assim, uma tal ideia, apesar da limitação de seu contexto de validade, constituir-se-ia num enorme avanço dado por Hooke. Esta mesma ideia de constância das temperaturas nas transições de fase, viria posteriormente a ser defendida por Jean De Luc, em  1754, e de forma mais convincente,  por Black, em 1757.
 Como consequência deste debate a respeito das temperaturas de mudanças de fase, a escolha de pontos fixos para a calibração dos termômetros permaneceu como algo extremamente polêmico, durante todo o século XVII. A constância da temperatura de fusão do gelo foi aceita bem antes que a da ebulição da água. A maior influência da pressão atmosférica sobre a temperatura de ebulição, fez com que a mesma não fosse bem aceita, por muito tempo, como um bom candidato a ponto fixo na calibração dos termômetros.
Diante dessa dificuldade de encontrar temperaturas constantes na natureza que pudessem servir de bons referenciais no estabelecimento das escalas termométricas, as opções adotadas pelos cientistas variavam. Estabeleceu-se uma disputa entre duas principais abordagens. De um lado, a adoção de um termômetro padrão, instrumento este que deveria ser fielmente copiado para que pudéssemos ter medidas comparáveis. De outro lado, a adoção de uma escala padrão, que uma vez bem estabelecida poderia vir a ser empregada em diferentes termômetros, com características de material, tamanho e outros detalhes de fabricação, não necessariamente semelhantes.
A questão da escolha dos pontos fixos apresentava-se na adoção da segunda opção, a do uso de uma escala padrão. Deste modo, duas correntes secundárias de pensamento apareceram dentre os que defendiam esta abordagem. Uma delas era a escolha de um único ponto fixo e um certo tamanho para o grau relacionado com a dilatação da substância termométrica escolhida.

Esta alternativa de adotar um único ponto fixo foi proposta de forma explícita e simultânea, em 1665, por Robert Boyle, Robert Hooke, Christiaan Huygens e Edmé Mariotte. A ideia consistia em marcar no tubo do termômetro um único ponto fixo, determinado experimentalmente. Tal marca serviria como ponto de partida para colocar as marcas dos graus no tubo. Cada grau corresponderia a uma certa fração, digamos 1/1000, do volume da substância termométrica quando esta estivesse à temperatura correspondente ao ponto fixo. Para um tal ponto fixo, Boyle sugeriu a temperatura de congelamento do óleo de semente de anis, Hooke a temperatura de congelamento da água e Huygens, a temperatura de congelamento ou a temperatura de ebulição da água.
Esse método era, no entanto, de difícil adoção, pois necessitava do conhecimento das características de dilatação do líquido. A alternativa simplista de definir um certo tamanho do grau medido diretamente no termômetro faria recair na primeira opção de termos de construir instrumentos idênticos. A segunda corrente de pensamento, dentre os que defendiam a escolha de uma escala padrão, era a adoção de dois pontos fixos e a consequente divisão do intervalo num certo número de graus. Esta alternativa, que já havia sido adotada originalmente por Sanctorius, trazia a vantagem de que se poderiam utilizar termômetros de materiais e tamanhos diferentes e ainda assim obter medidas semelhantes  de temperatura. A enorme dificuldade, no entanto, estava em encontrar e escolher não apenas uma, mas duas temperaturas constantes e facilmente reprodutíveis que pudessem servir de referências como pontos fixos.
Dentro deste quadro, o problema das temperaturas fixas permaneceu sem uma definição clara, durante todo o século XVII e muitos preferiram simplesmente ignorá-la. Deste modo, numerosos termoscópios, já então indevidamente denominados de termômetros, foram construídos contendo escalas arbitrárias de oito ou dez graus, com uma divisão média temperada. A escala, neste sentido, era concebida como uma escala qualquer de qualidades. Dentre aqueles pioneiros que insistiam no estabelecimento de escalas mais precisas persistia a polêmica sobre a adoção de determinadas temperaturas fixas - em especial a da ebulição da água, altamente variável com a pressão.
Muitas foram as soluções imaginadas, todas elas incompletas e insatisfatórias. Dentre as mais interessantes soluções propostas estão, como será visto mais adiante, aquelas desenvolvidas por Newton, Amontons, Fahrenheit e Reaumur. Essa persistência na busca de formas de aperfeiçoar as medições da temperatura corresponderia ao crescimento de uma corrente de pensamento sensualista, que viria a desenvolver-se no século XVIII em substituição ao aristotelismo motivando as pesquisas sobre a determinação de escalas de intensidades das qualidades sensíveis. Para compreendermos tais tentativas de solução, é preciso, no entanto, que acompanhemos as idas e vindas que levaram às mesmas.

Próximo texto desta série: Os Trabalhos da Accademia del Cimento.
PARA CITAR ESTA FONTE: Medeiros, Alexandre. Problemas com os Primeiros Termoscópios. Física e Astronomia_Alexandre Medeiros, BLOG.

O Termômetro Clínico de Sanctorius


Alexandre Medeiros (PhD, University of Leeds – Professor de Física e Astronomia, UFRPE)

TÓPICOS DE HISTÓRIA DA FÍSICA

O Termômetro Clínico de Sanctorius

Em 1612, Sanctorius Sanctorius (1561-1636), um médico e professor da Universidade de Pádua, modificou o antigo instrumento grego, ou mais provavelmente adaptou o instrumento do seu colega Galileu com a finalidade específica de avaliar com maior precisão a temperatura do corpo humano. Seu aparelho, primeiro termoscópio clínico de que se tem notícia, consistia de um tubo de vidro comprido e estreito, em forma de serpentina, com uma pequena esfera oca fechando uma extremidade.

A extremidade livre do tubo era imersa num vaso d'água. O aquecimento e o posterior resfriamento da esfera faziam com que a água subisse pelo tubo de vidro. A esfera era então colocada dentro da boca do paciente. O calor do corpo provocava a dilatação térmica do ar contido na esfera fazendo variar o nível da água no tubo.
Isso fornecia uma avaliação, ainda que grosseira, da temperatura do paciente. Para melhorar a precisão do instrumento, o tubo era   graduado com pequenas contas de vidro, colocadas em intervalos arbitrários iguais entre dois pontos fixos previamente determinados. Tais pontos eram correspondentes às temperaturas da aplicação da bolinha à neve e à chama de uma vela. Era, sem dúvida, um instrumento rudimentar, mas que já continha a idéia da necessidade de pontos fixos, relacionados às temperaturas presumivelmente constantes e reprodutíveis, necessárias para a sua graduação.

Como o seu funcionamento estava ainda baseado na dilatação do ar, que era a sua substância termométrica, tratava-se de um aparelho muito sensível, apesar de impreciso, que reagia visivelmente a pequenas variações de temperatura, como seria de se esperar de um termoscópio clínico.
A imprecisão com que era construído, no entanto, tornava cada termoscópio deste tipo, um exemplar único e diferente dos demais. Suas marcações não coincidiam entre si e deste modo cada um deles necessitava de uma graduação específica.
Além disso, por ter uma das extremidades abertas, as marcações fornecidas por um mesmo termoscópio de Sanctorius variavam com o tempo, pois eram sensíveis à influência da pressão atmosférica. Esse fato tornava a escala ainda mais imprecisa.
Ainda assim, Sanctorius estabeleceu em seu termoscópio as marcas que correspondiam aos graus de calor aproximados relacionados com o estado de saúde do corpo humano, assim como as flutuações do temperamento do calor, ou temperatura, durante os estados febris. Antes de Sanctorius, as avaliações dos estados febris eram meramente qualitativas.
 Ainda que seu instrumento possa parecer-nos, hoje, como extremamente tosco, constituiu-se à época num enorme avanço na medicina que incorporava novas concepções teóricas como, por exemplo, a necessidade de pontos fixos para a sua graduação.
Embora a data de 1612 seja costumeiramente mencionada como a da invenção, por Sanctorius, do seu termoscópio clínico, a primeira referência escrita ao mesmo só veio a aparecer em sua obra de 1626 intitulada Commentaria in Artem Medicinalem Galeni. Marcando a forte influência aristotélica àquela época, a referência ao instrumento feita por Sanctorius, aparece apenas num comentário escrito em tal obra sobre os trabalhos do médico árabe e aristotélico medieval, Avicenna.


Próximo texto desta série: Problemas com os Primeiros Termoscópios

PARA CITAR ESTA FONTE: Medeiros, Alexandre. O Termômetro Clínico de Sanctorius. Física e Astronomia_Alexandre Medeiros, BLOG.






quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Os Primeiros Termoscópios

Alexandre Medeiros (PhD, University of Leeds – Professor de Física e Astronomia, UFRPE)

Tópicos História da Física

Os Primeiros Termoscópios

A invenção do termômetro é algo polêmico. Não se sabe, ao certo, qual a primeira pessoa que teria inventado esse instrumento tão importante para o estudo dos fenômenos relacionados ao calor. Existem divergências entre os historiadores da ciência sobre a justeza de conceder legitimidade a um relato histórico por vezes escassamente documentado. Isso tem levado alguns historiadores a não creditarem a primazia de uma descoberta ou de uma invenção a um determinado indivíduo sem claros e confiáveis registros escritos. Observaremos tal polêmica no relato histórico que se segue.
Para além, no entanto, desta questão de confiabilidade das fontes históricas, existe ainda algo igualmente importante envolvido nesse debate. O que está em jogo numa tal disputa é algo mais complexo que simplesmente procurar o primeiro indivíduo que tenha construído um instrumento que se assemelhe ao nosso termômetro atual. A questão envolve a nossa própria conceituação do que possa, ou não, ser tido como um termômetro. Além disso, a própria idéia de invenção requer uma intencionalidade da parte do inventor, no nosso caso uma intencionalidade em construir um instrumento para medir, ou ao menos avaliar, temperaturas, que precisa ser cuidadosamente analisada.

Algumas informações históricas sobre os primeiros termômetros são um tanto imprecisas. Robert Fludd (1574-1637), alquimista inglês, por exemplo, fez referência, em sua obra Philosophia Moysaica a um certo instrumento, que poderia ter servido para medir temperaturas e que, segundo ele, havia visto descrito em um manuscrito, já então, com mais de quinhentos anos.
É certo, que já na Antiguidade grega, Philo de Bizâncio, por volta do século I AC e Heron de Alexandria, no século I da nossa era, haviam construído curiosos instrumentos, baseados na dilatação do ar, que poderiam ter sido os primeiros instrumentos destinados a avaliar, ou mesmo medir, os aquecimentos.


O aparelho de Philo era constituído simplesmente de um tubo de vidro em U com um dos seus ramos penetrando até o fundo de uma esfera oca de chumbo. O outro ramo do tubo era mergulhado num vaso com água. Vedando-se o encaixe do tubo com a esfera e aquecendo-se a mesma, surgiam bolhas de ar no vaso com água.
Na verdade, o ar aprisionado na esfera dilatava-se escapando como bolhas através do vaso com água. O tubo ao ser posteriormente resfriado causava a contração do ar fazendo com que a água do vaso subisse pelo tubo. Era um aparelho muito interessante, cujo funcionamento dependia essencialmente das variações de temperatura.
 Observar um tal instrumento com o nosso conhecimento atual pode levar-nos a imaginar que, sem dúvida, as variações dos níveis da água poderiam ter sido utilizadas como uma forma de medir a temperatura. Embora esta possibilidade pudesse efetivamente ter sido desenvolvida, isso, no entanto, jamais ocorreu a Philo ou a qualquer outro filósofo grego da Antiguidade. Há várias razões para isso. Em primeiro lugar, a preocupação dos gregos era, aparentemente, com os efeitos misteriosos produzidos pelo instrumento, não lhes tendo ocorrido, jamais, a idéia de associar tais efeitos como uma forma de medir a temperatura.
Heron chegou a desenvolver uma grande variedade de instrumentos, principalmente fontes, cujos misteriosos funcionamentos envolviam, certamente, noções intuitivas de hidrostática e de dilatação dos fluidos. Tais instrumentos, porém, foram utilizados principalmente para a produção de efeitos ilusórios, aparentemente mágicos, nos templos do Deus Serápis. Serápis era um novo Deus, inventado pelos conquistadores gregos de Alexandria, em substituição aos velhos deuses Egípcios e posteriormente identificado pelos dominadores romanos com Zeus, o Deus dos deuses. Os efeitos ilusórios produzidos pelos instrumentos, aparentemente inocentes, de Heron, que ainda hoje nos causam admiração, devem ter desempenhado um papel importante para a classe dominante romana de Alexandria.
Quando olhamos atentamente certos dispositivos da antiga Alexandria, como as variadas fontes e principalmente a aeolipila de Heron, (figura ao lado), espécie de turbina a vapor primitiva em forma de esfera oca com saídas laterais que girava rapidamente com a dilatação da água nela contida, damo-nos conta de quão próximos estiveram os antigos gregos, do ponto de vista técnico, da invenção da máquina a vapor e portanto do desenvolvimento de uma ciência do calor.
Numa sociedade escravista, porém, como a da antiga Alexandria, na qual a mão de obra era farta e barata, não parece ter ocorrido a nenhum filósofo a idéia de utilizar aqueles instrumentos para substituir o trabalho humano. A função da ciência, segundo as expectativas da classe dominante, não poderia mesmo ir além da produção de mágicas e efeitos ilusórios.
O desenvolvimento da máquina a vapor e de uma decorrente ciência do calor tiveram de esperar quase dois mil anos até que se produzissem condições sociais nas quais novos problemas viessem a dar um novo impulso ao desenvolvimento científico. O final da Idade Média coincidiu com uma época na qual  as grandes navegações , a invenção das armas de fogo e a difusão dos livros impressos trouxeram uma grande modificação na mentalidade européia. Problemas como o esgotamento das minas, a previsão do tempo, o controle da febre trazida pelas novas doenças, a expansão dos gases dentro das armas de fogo e principalmente o posterior desenvolvimento da produção nas fábricas, fazem parte de um conjunto complexo de influências sócio-econômicas que pavimentaram o novo caminho que a ciência viria a trilhar. O século XVII, caracterizado pela Revolução Científica, foi, neste contexto, o cenário inicial de transformações mais profundas que viriam a ocorrer no século seguinte com a Revolução Industrial. De modo análogo, o desenvolvimento da termometria no século XVII e início do século XVIII, constituiu-se na ante-sala do desenvolvimento da calorimetria no século XVIII e da termodinâmica no século XIX.
Retomemos, portanto, a problemática de como os antigos instrumentos de Philo e de Heron poderiam ser interpretados em épocas distintas. Não tendo sido utilizados com a finalidade específica de medir, ou ao menos avaliar, temperaturas, aqueles aparelhos não podem ser tidos como verdadeiros termômetros, mas apenas como precursores e inspiradores dos mesmos.
Uma invenção não ocorre necessariamente quando um novo instrumento é construído, mas quando uma nova possibilidade do mesmo, é explorada. É o tipo de uso que se faz de um certo instrumento que caracteriza, ou não, a presença de um elemento novo e criativo. Neste sentido, os antigos instrumentos gregos, construídos por Philo e Heron, não podem ser tidos como legítimos aparelhos de medida, pois lhes faltou a intenção de utilizarem tais dispositivos  para avaliarem as temperaturas. A simples idéia de que uma temperatura pudesse ao menos vir a ser medida era algo totalmente estranho à Antiguidade e à Idade Média. É inegável, no entanto, o papel exercido por tais instrumentos gregos como fontes inspiradoras para novas formas de uso nos séculos XVII e XVIII. Neste sentido, por exemplo, a célebre obra de Heron Os Pneumáticos, que foi traduzida e publicada em latim em 1575 e em italiano em 1589, viria a constituir-se num ponto de partida para os novos estudos e descobertas sobre o calor e a temperatura no século XVII.
Normalmente, entende-se como descoberta o encontro de um fato novo. No entanto, a idéia relacionada a este fato é que constitui, na realidade, a verdadeira descoberta. Toda iniciativa experimental inclui necessariamente uma idéia. É precisamente esta idéia que dá origem à experiência e confere significado à mesma. Deste modo, uma descoberta não é feita necessariamente quando um novo fato é encontrado, mas, sobretudo, quando fatos já conhecidos são vistos de uma maneira totalmente nova.
Foi dentro dessa perspectiva de descoberta que se deu a releitura e as novas interpretações de antigos conhecimentos gregos e que teve início a moderna história da termometria.
Levando-se em conta o caráter da experiência ser carregada de uma reflexão teórica, poderíamos questionar a quem teria ocorrido, primeiramente, a utilização de um instrumento com o propósito deliberado de medir temperaturas. Vários indivíduos têm sido apontados como responsáveis por este salto conceitual, dentre eles Galileu Galilei (1564-1642), Francis Bacon (1561-1626), Sanctorius Sanctorius (1561-1636), Robert Fludd (1574-1637), Jan Baptista van Helmont (1577-1644) e Cornelius Van Drebbel (1572-1634).

Provavelmente, no início do século XVII, os primeiros instrumentos concebidos para medirem a temperatura surgiram mais ou menos simultaneamente e em locais variados.
Este é um exemplo, dentre vários outros que podem ser encontrados na história da ciência, de descobertas simultâneas. Uma certa temática, ligada muitas vezes a uma determinada expectativa social, aparece em certas ocasiões como um verdadeiro problema de pesquisa. Esta temática, transformada, então, em um problema a ser resolvido, é atacada simultaneamente por várias pessoas, em vários locais, muitas vezes isoladamente umas das outras. Nestas circunstâncias, os tipos de abordagens adotados, e não exatamente a primazia cronológica das descobertas, é que se constituem em objetos de estudo historicamente mais relevantes.
De um modo geral, aqueles primeiros instrumentos eram todos imprecisos, sujeitos às influências da pressão atmosférica, servindo mais para indicar variações de temperatura que marcações precisas da mesma. Apenas a partir de 1617 é que tais instrumentos passaram a ter a denominação específica de termoscópios. A denominação de termômetros, que viria a tornar-se dominante, é um pouco posterior, tendo sido utilizada pela primeira vez apenas em 1624 pelo matemático francês Jean Leurechon (1593-1670), em sua obra intitulada La Récréation Mathématique, na qual introduziu o vocábulo francês termomètre.

Ainda assim, dada a imprecisão daqueles primeiros instrumentos, a denominação mais propícia, segundo nosso conhecimento atual, teria sido, apesar de não ter sido utilizada àquela época, a de termobaroscópios, para assinalar a influência da pressão atmosférica, até então desconhecida. Apesar da denominação de termômetro ter vindo a tornar-se de uso indiscriminado na segunda metade do século XVII, o primeiro instrumento que viria realmente a merecer tal denominação, segundo a nossa compreensão atual da necessidade de conter uma escala precisa, viria a ser construído apenas em 1714, por Daniel Fahrenheit, como veremos mais detalhadamente na sequência deste texto.
Note-se que a influência da pressão atmosférica nas marcações dos primeiros termoscópios era algo impossível de ser observado no início do século XVII, pois o próprio conceito de pressão atmosférica ainda não existia.


A ideia revolucionária de que a atmosfera exerce uma pressão sobre os corpos nela imersos só viria a ser introduzida na física por Evangelista Torricelli em 1643, como uma tentativa arrojada de compreender e solucionar o problema do limite da altura alcançada pela coluna de água nas bombas de sucção utilizadas nas fontes.
Esta questão da pressão atmosférica serve igualmente para ilustrar o quanto as observações são carregadas de teoria.
Durante quase dois séculos, do final do século XVI até meados do século XVIII, os estudos sobre o calor e a temperatura, e mais especificamente sobre os problemas da medida da temperatura, estiveram diretamente relacionados às questões da saúde e do clima. Não é, portanto, surpreendente que tais estudos, tenham sido conduzidos inicialmente por indivíduos ligados à prática da medicina ou da meteorologia. As idéias de temperatura e calor ainda não estavam, à época, bem distintas uma da outra, fato que, como já assinalamos, só viria a ter início com os trabalhos de Joseph Black, na metade do século XVIII e que marca o início de um novo ramo da física, a Calorimetria, cujo estudo pormenorizado está fora do escopo deste presente trabalho. Cabe salientar, entretanto, que até meados do século XVIII, ainda sob a influência remanescente do pensamento aristotélico, muitos referiam-se, de forma não diferenciada, a graus de calor, temperamento do calor ou temperatura. A medida da temperatura era vista, deste modo, como dando conta de tudo o que poderia ser medido nos fenômenos térmicos.
Só com os trabalhos de Black é que a temperatura começaria a ser vista como a  intensidade do calor, para diferenciá-la  da quantidade de calor. Foi a possibilidade de medir quantidades de calor, vislumbrada por Black, por volta de 1754, como algo bem diferente das medições de temperatura, que levou à invenção de um  novo instrumento, o calorímetro, e deste modo à invenção da nova ciência da Calorimetria. Para que isso, no entanto, viesse a ocorrer em meados do século XVIII, foi preciso que antes termômetros mais precisos viessem a estar disponíveis, o que nos remete a retomar o curso do seu desenvolvimento histórico.
Possivelmente, o primeiro instrumento científico construído especificamente para medir temperaturas foi inventado por Galileu, por volta de 1592, logo após a tradução, para o italiano, dos trabalhos de Heron. Galileu não parece, no entanto, ter atribuído ao seu instrumento o merecido valor, pois não são conhecidas afirmações escritas, do próprio Galileu, dando conta da construção do instrumento. A invenção do termoscópio foi creditada a Galileu principalmente pelos seus discípulos, pois seus próprios escritos contêm apenas uma única referência ao princípio desse instrumento.  Embora Sagredo, numa carta ao seu amigo Galileu,  datada de 1615, tenha atribuído ao mesmo a invenção do termômetro, o próprio Galileu afirmava apenas ter melhorado uma forma primitiva desse instrumento.  Tal afirmação parece confirmar a influência grega acima mencionada. Em apenas uma ocasião Galileu fez referência escrita ao uso do instrumento, sem reivindicar, entretanto, a autoria do mesmo.
A versão da invenção do termoscópio, por Galileu, em 1592, pertence a Viviani (1622-1703), outro de seus discípulos e primeiro biógrafo do grande mestre italiano. Por outro lado, a célebre descrição do termoscópio dada por Castelli (1578-1643) está contida numa carta que este discípulo de Galileu escreveu a Cesarini em 1638 na qual afirmava ter visto seu mestre usar o instrumento nas suas aulas em 1603.



Segundo Castelli, "Galileu tomou um vaso de vidro aproximadamente do tamanho de um ovo de galinha e ajustou-o a um tubo da largura de um canudo com cerca de 18 polegadas de comprimento; ele aqueceu o bulbo de vidro em suas mãos e inverteu o tubo mergulhando-o num outro vaso com água. Tão logo o vaso resfriou-se a água subiu no tubo até a altura de 9 polegadas acima do nível do segundo vaso. Ele usou este instrumento para investigar os graus de calor e frio”. Note-se que os deslocamentos da coluna líquida eram causados, no termoscópio de Galileu, não pela dilatação do líquido, mas pela dilatação do ar contido na ampola de vidro.
Deste modo, o ar era a verdadeira substância indicadora da temperatura, ou substância termométrica, como denominamos atualmente, e a dilatação do ar servia como propriedade indicadora da temperatura, ou propriedade termométrica.
Esta contribuição conceitual era de grande importância, mas Galileu não apenas não deu grande valor ao seu instrumento como não parece, sobretudo, ter tido a clareza do salto genial que havia dado ao usar tal instrumento para medir temperaturas. Apesar disso, a genialidade de Galileu está em ter interpretado, intencionalmente, as alturas da coluna líquida como possíveis medidas das temperaturas que a elas pareciam associadas. Assumiu Galileu, portanto, o pressuposto de que a cada valor de temperatura corresponderia um e apenas um comprimento da coluna de água.
Esta ideia brilhante não era de todo verdadeira, no caso do seu instrumento, pois sendo o mesmo aberto, as variações da pressão atmosférica faziam com que para uma mesma temperatura fosse possível, em diferentes ocasiões, observarem-se diferentes alturas da coluna líquida. Galileu não parece ter-se dado conta deste detalhe, apontado posteriormente por Robert Boyle após os trabalhos de Torricelli, Pascal e Guericke sobre a pressão atmosférica. De todo modo, esse seria um problema que viria a ser superado, de formas variadas, ao longo dos desenvolvimentos posteriores da termometria.
Mesmo desconhecendo a falha do seu instrumento, e conseqüentemente sua possível solução, Galileu assumiu a conjectura arrojada de que haveria uma e apenas uma altura da coluna de água para cada valor de temperatura. Tal conjectura, que hoje pode parecer simples à primeira vista, corresponde, na verdade, a um enorme salto conceitual. Ela equivale ao reconhecimento tácito de que a temperatura é um tipo de propriedade da natureza diferente, por exemplo, do comprimento.
Tomemos um exemplo para esclarecer a questão. Suponhamos que temos dois bastões de madeira, um  com dois metros de comprimento e o outro com três. Se colocarmos um no prolongamento do outro, poderemos formar um novo bastão de cinco metros, ou seja, o novo comprimento será o resultado da adição das extensões anteriores. O mesmo dá-se com a massa. Se colocarmos cem gramas de água numa panela e em seguida mais duzentos gramas, teremos no total trezentos gramas de água na panela. Esse caráter aditivo faz com que possamos medir os valores de tais grandezas por comparação direta com um valor padrão daquela mesma grandeza.
Podemos, deste modo, imaginar um comprimento de cinco metros como resultado da adição de cinco comprimentos de um metro, o mesmo raciocínio valendo para a massa.  Isso pode, atualmente, parecer-nos óbvio, pois estamos tão acostumados com esses fatos, que a familiaridade faz com que não reflitamos sobre eles. Tomamos como naturais idéias que nos vêm apenas da tradição de pensar de um certo modo. Mas será que todas as grandezas físicas podem ser medidas do mesmo modo que massas e comprimentos, ou seja, por comparação direta com um valor padrão? Em outras palavras, será que todas as grandezas físicas, podem ter esse caráter aditivo de seus valores, característico dos comprimentos, das extensões?
Vejamos um outro exemplo. Se colocarmos um copo com água a 10oC numa panela e logo após outro copo d'água, também a 10oC, será que teremos como resultado que a água da panela atingirá os 20o? A experiência mostra-nos que não. Ou seja, a temperatura não é uma grandeza do mesmo tipo que o comprimento ou a massa. Ela não possui esse caráter aditivo direto, característico das massas e dos comprimentos. Assim sendo, as medições de temperatura não podem ser feitas por comparações diretas, como no caso das extensões.
Daí a importância de enfatizarmos a interpretação da temperatura como algo semelhante a uma intensidade de calor, diferentemente da conceituação mais antiga de simples graus de calor, que não fazia distinção entre calor e temperatura. Tal conceituação, no entanto, como dissemos anteriormente, viria a ser construída apenas nos tempos de Black, mais de cento e cinqüenta anos após a invenção de Galileu.
Ainda, no entanto, que esse caráter intensivo da temperatura só tenha vindo a ser revelado explicitamente por  Black, ele já estava contido de forma implícita e embrionária na intenção de Galileu de medir as temperaturas de uma forma indireta, fazendo recurso ao tipo de associação acima discutido: para cada valor de comprimento da coluna líquida do termoscópio deveria existir, a princípio,  um e apenas um valor da temperatura.

Galileu não parece, porém, ter estado em alerta para a utilidade da marcação de temperaturas de referência na calibração do seu instrumento. Desta maneira, não introduziu nenhuma verdadeira escala, contentando-se em subdividir aleatoriamente o comprimento do tubo em divisões do mesmo tamanho. Com efeito, Galileu parece ter adicionado ao seu termoscópio, uma escala que consistia apenas de uma longa tira de papel fixada ao tubo de vidro e marcada arbitrariamente com oito longos espaços, cada um dos quais, divididos em sessenta intervalos menores, ou graus. Uma tal escala, parece inspirada nas graduações adotadas em instrumentos astronômicos em graus e minutos.
A falta de testemunhos escritos mais pormenorizados tem levado alguns historiadores a creditarem a outros, e não apenas a Galileu, a invenção do primeiro termoscópio. Cornelius van Drebbel (1572-1634), por exemplo, tem sido por vezes mencionado como tendo construído, em 1621, um termoscópio no qual a dilatação de uma certa massa de ar elevava uma coluna de água. Semelhante ao instrumento de Galileu, este também dava indicações errôneas devido às variações da pressão atmosférica. Drebbel, um construtor de instrumentos holandês, fixado na Inglaterra, ficou mais conhecido, no entanto, pela invenção do primeiro protótipo de um submarino, que navegou pelo rio Tamisa, em Londres, em 1624.
Jan Baptista van Helmont (1579-1644), médico e alquimista flamengo, mais ou menos à mesma época, utilizou, também termoscópios para medir a temperatura dos corpos. Analogamente, Francis Bacon (1561-1626), já em 1620, descreveu um instrumento muito parecido, tendo igualmente uma tira de papel fixada ao tubo de vidro contendo uma escala com as mesmas limitações daquela utilizada por Galileu.

Próximo texto deste série: O Termômetro Clínico de Sanctorius.


 
PARA CITAR ESTA FONTE: Medeiros, Alexandre. Os Primeiros Termoscópios. BLOG Física e Astronomia_Alexandre Medeiros, BLOG.














Os Primórdios da Ideia de Temperatura

Alexandre Medeiros (PhD, University of Leeds – Professor de Física e Astronomia, UFRPE)

Tópicos História da Física

Os Primórdios da Ideia de Temperatura

As ideias intuitivas de quente e frio são muito antigas, assim como o conhecimento igualmente intuitivo, do equilíbrio térmico: a ideia de que quando um corpo quente entra em contato com um corpo frio, o primeiro sofre um resfriamento e o segundo um aquecimento. Tal processo de mudança, ao completar-se, dá origem à ideia de que um certo equilíbrio teria sido atingido.
Mas equilíbrio de que?
Sem uma distinção clara entre os conceitos de calor e temperatura, distinção esta que só viria começar a se construir na metade do século XVIII, foi impossível, por muito tempo, dar uma resposta clara a esta questão. A ideia, até então vigente, era a de que os corpos em equilíbrio térmico possuiriam as mesmas quantidades de calor, ou os mesmos graus de calor. As noções de quantidades de calor e graus de calor eram vistas, deste modo, praticamente, como sinônimos. A questão era de difícil solução na medida em que não havia nenhum modo conhecido de medir quantidades de calor, ou o que não parecia até então muito diferente, de medir as temperaturas dos corpos.
Foi o desenvolvimento de processos e instrumentos de medição da temperatura, ao longo do século XVII e da primeira metade do século XVIII, que veio a possibilitar as condições para que as ideias de temperatura e calor viessem a ter conceituações mais nítidas e distintas uma da outra.
Na Física de Aristóteles (384-322 AC), a palavra temperatura aparecia com a conceituação de um temperamento ou estado assumido pelos corpos, dado pelo grau da mistura de qualidades opostas: o quente e o frio.

Galeno (129-200), médico grego, seguindo o raciocínio aristotélico, propôs a existência de quatro graus de temperatura a partir de um ponto neutro obtido pela mistura de quantidades iguais de gelo e água fervente.
Galeno admitia ainda que cada indivíduo possuía uma temperatura própria que era alterada quando doente. Os remédios que traziam a cura deveriam, assim, restabelecer o temperamento ideal do corpo e assim sendo o grau apropriado de calor ou de frio. Na verdade, escalas qualitativas de temperatura, semelhantes às de Galeno, envolvendo referências às estações do ano, como o mais quente verão e o mais frio inverno, existiram, de há muito, entre povos das mais variadas regiões do planeta.

Nada disso, porém, assemelhava-se à possibilidade de ao menos imaginar-se a temperatura como algo que pudesse realmente vir a ser medido.
A história das medições da temperatura, ou seja, da termometria, não é algo que tenha ocorrido sem problemas. Ela se desenvolveu como uma consequência de uma reflexão humana sobre certos fenômenos do cotidiano. Não é novo, por exemplo, o conhecimento empírico de que os corpos sofrem diversos tipos de mudanças com os aquecimentos e os resfriamentos dos mesmos. A dilatação térmica é talvez a mais notável de tais mudanças. É da observação diária a constatação de que a maioria dos corpos aumenta de volume ao serem aquecidos. Esse conhecimento empírico, no entanto, não dá conta, por si só, de responder à questão básica de como avaliar com precisão uma temperatura.


John Locke (1632-1704), filósofo inglês, contemporâneo de Newton, idealizou, em 1690, um experimento que viria a tornar-se famoso entre os professores de física. Tal experimento ilustra bem a dificuldade que podemos encontrar para avaliarmos as temperaturas dos corpos. Locke propôs a seguinte situação: coloquemos uma mão num vaso com água quente e a outra mão num vaso com água fria. Em seguida coloquemos as duas mãos num terceiro vaso com água morna.
Como avaliaremos a temperatura deste terceiro vaso?
A mão que veio do vaso quente dar-nos-á uma sensação de frio enquanto a outra mão vinda do vaso frio dar-nos-á uma sensação oposta. Tal experimento parece mostrar-nos a necessidade de avaliarmos de uma forma mais precisa as temperaturas dos corpos, forma esta que não dependa apenas dos nossos sentidos.
Poderíamos mesmo conjecturar sobre a possibilidade de medirmos a temperatura, mas como seria possível medirmos uma temperatura?
A resposta a esta questão pode, atualmente, parecer-nos óbvia: com um termômetro! Mas imaginemo-nos numa época em que os termômetros ainda não existissem.
Quais as dificuldades que poderíamos encontrar para que, ao menos, pudéssemos conceber uma tal possibilidade?
Estamos, nos dias atuais, tão habituados a medir temperaturas, com o uso corriqueiro de termômetros, que não nos damos conta da complexidade teórico-prática envolvida nesse ato de medição. Tomamos, equivocadamente, como algo conhecido muitas coisas às quais apenas nos habituamos, sem reflexão, a fazer. Em outras palavras, tomamos como naturais coisas que são apenas tradicionais, pois a tradição acostuma-nos com uma forma de pensar e leva-nos a não refletirmos sobre as origens do conhecimento.
Eis, portanto, um contributo que a história pode oferecer à aprendizagem da ciência: resgatar as origens das ideias, substituindo um discurso dogmático por uma aprendizagem fundamentada na compreensão das dificuldades envolvidas no processo construtivo das ideias.
Assim sendo, retomemos a questão das dificuldades teóricas encontradas na simples concepção da possibilidade de medirmos a temperatura.
Qual é, afinal, a essência do problema?
 O problema fundamental é que a temperatura não é uma grandeza como a distância, que se preste a medições diretas. A temperatura só pode ser avaliada admitindo-se a existência de uma dependência matemática, de uma função, para falar em termos mais modernos, entre as mudanças de temperaturas e outras propriedades dos corpos, tais como o volume ou a pressão. O simples fato de alguém perceber que variações na temperatura de um corpo são sempre acompanhadas por variações em outras propriedades desse mesmo corpo, não implica no reconhecimento de que exista uma dependência do tipo funcional entre essas duas coisas. Não é absolutamente óbvio que possamos associar a cada temperatura diferente um número diferente e que cada valor desta temperatura tenha associado um e apenas um valor da outra grandeza física cuja variação estejamos observando, como o comprimento de uma coluna líquida, por exemplo. Isto  é parte de uma construção mental na história da física que veio a revelar-se muito frutífera, e à qual estamos certamente bastante habituados, mas que está longe de ser óbvia. Menos óbvio ainda é que tipo de função, se tal existir, deva ser esta relação identificada.
À primeira vista, poder-se-ia pensar na obviedade da existência de uma função linear, mas esta função serve apenas como uma primeira aproximação do fenômeno em estudo. Não possuímos nenhuma garantia inicial de que esta função, se ao menos existir, deva ser necessariamente uma função linear.
A invenção do termômetro, portanto, requer da parte do seu criador uma postura de admitir, ainda que sem garantias iniciais, ou seja, tacitamente, um pressuposto teórico fundamental: a existência de uma dependência simples entre a temperatura e uma outra grandeza mais diretamente mensurável.
Apenas deste modo, as observações feitas com o termômetro poderão ser interpretadas como indicativas das temperaturas do instrumento. A leitura do comprimento de uma coluna de mercúrio, por exemplo, só pode ganhar o significado de um valor da temperatura caso tais observações do instrumento estejam sendo feitas por alguém que previamente admita, ainda que tacitamente, a existência da função acima discutida. Sem esse pressuposto teórico, consciente ou não, a leitura de um termômetro de mercúrio, por exemplo, forneceria apenas os valores dos comprimentos assumidos pela coluna do líquido e não o valor das temperaturas do instrumento.
É nesse sentido que se poderia afirmar que as observações feitas com um termômetro estão carregadas de teoria, pois contêm pressupostos fundamentais sobre a realidade a ser estudada que conferem um novo significado às leituras efetuadas. Desse modo, a realidade percebida através das leituras de um termômetro tem uma dimensão teórica implícita que faz com que esta realidade assim percebida possa ser dita como tendo sido uma realidade construída pelo observador e não apenas uma realidade observada de forma direta.
Esse, no entanto, não é o único aspecto problemático da invenção do termômetro. Observe o leitor que dissemos acima que a leitura do termômetro fornecia a temperatura daquele instrumento. Não afirmamos que a leitura de tal instrumento fornecia a temperatura do ambiente como, por exemplo, a de um líquido no qual estivesse imerso. Isso pode parecer estranho, pois afinal o termômetro é usado habitualmente para determinar não a sua própria temperatura, mas a temperatura de outros corpos. Quando um médico coloca um termômetro num paciente, ele não diz que a temperatura do termômetro é de, por exemplo, 38o C. Ele afirma que a temperatura do paciente é 38o C.
O que lhe dá o direito de fazer esta afirmação?
Afinal, mesmo assumindo, como dissemos antes, a existência de uma função entre os comprimentos da coluna de mercúrio e da temperatura, o que estaria sendo admitido seria a dependência entre as propriedades de um mesmo corpo, no caso o termômetro. Assim sendo, o que o termômetro forneceria, mesmo já se levando em conta o pressuposto acima discutido, seria apenas a sua própria temperatura e não a do ambiente no qual estivesse inserido.
Como, no entanto, dizemos habitualmente que um termômetro indica a temperatura do ambiente?
Para que possamos afirmar que a temperatura lida no instrumento é a do ambiente, deveremos estar fazendo, na verdade, conscientes ou não, outro pressuposto teórico. Estaremos assumindo, por exemplo, implicitamente que quando dois corpos, não em mudança de fases, estiverem em contato um com o outro, e um deles não estiver mais variando a sua temperatura, o outro também não deverá estar. Esta aparente obviedade está, na verdade, apoiada na existência de um esquema conceitual oculto que nos diz, por exemplo, que algo passa entre dois corpos em contato que estejam a temperaturas diferentes e que este algo, que aqui chamaremos simplesmente de calor, sem discutirmos ainda o que tal palavra possa significar, só deixa de passar entre os corpos quando suas temperaturas tornam-se iguais. Não importa que os conceitos de calor e temperatura não estejam precisos, que não se tenha dito se o calor é um fluido, um movimento de partículas ou outra coisa qualquer.
Não importa também se as próprias ideias de calor e temperatura não estejam ainda bem distintas uma da outra. Mesmo assim, o nosso esquema conceitual, implícito, indica que quando um dos corpos em contato  deixar de variar a sua temperatura, isto será um sinal de que aquele algo, a que chamamos de calor, terá deixado igualmente de ser recebido ou cedido pelo referido corpo e desta forma terá deixado igualmente de ser cedido ou recebido pelo outro que assim também não teria como variar sua temperatura. A ideia, portanto, que as temperaturas sejam iguais corresponde igualmente a uma construção mental. Essa construção é o que define a situação que denominamos de equilíbrio térmico.
Mais complexa ainda é a situação na qual usamos um termômetro para comparar as temperaturas de dois corpos distintos e isolados um do outro. Quando o termômetro mostra-se separadamente em equilíbrio térmico com os dois dizemos, mesmo sem termos feito o contato direto entre aqueles dois corpos, que eles estão a uma mesma temperatura. Admitimos isso, implicitamente, todas as vezes que comparamos, com o auxílio de um termômetro, as temperaturas de dois corpos. Isso equivale a dizer que dois corpos em equilíbrio térmico com um terceiro, no caso o termômetro, têm a mesma temperatura.  Em termos matemáticos, isso equivale a estarmos aplicando a propriedade transitiva aos valores das temperaturas. Tal premissa recebe o nome de lei zero da termodinâmica e sua afirmação explícita corresponde a um nível de reflexão sobre o que está implícito no uso do termômetro.


Para que se perceba a não obviedade desta ideia, seria interessante salientar que a sua clara explicitação, feita por Joseph Black (1728-1797) médico e químico escocês, na metade do século XVIII, só veio a ocorrer após mais de cento e cinquenta anos de desenvolvimento do termômetro. Físicos tão importantes como Galileu, Newton e Boyle, dentre outros, utilizaram, sem dúvida,  tacitamente, um tal conhecimento, sem se darem conta da enorme importância da sua explicitação.
Como afirmou Max Planck, um dos maiores físicos do século XX, "o fato de que dois corpos independentes em equilíbrio térmico com um terceiro corpo, encontrem-se também em equilíbrio térmico entre si, não se constitui num fenômeno evidente por si mesmo, mas sim num problema muito importante e significativo".
Há vários tipos, portanto, de reflexões a respeito do termômetro e do seu funcionamento que se revelaram historicamente necessárias para o desenvolvimento desse instrumento. Tais reflexões transcenderam o mero conhecimento intuitivo e exigiram assim uma atitude teorizadora aliada a uma postura experimental, cujo início  não se deu antes do final do século XVI. A história da termometria é, assim, em boa parte, a história da busca de respostas para questões desse tipo.
Como surgiram, no entanto, tais indagações?
É preciso recuar um pouco no tempo para buscarmos uma possível resposta e seguir uma sequência histórica que nos permita aquilatar o grau das dificuldades enfrentadas e a engenhosidade das soluções propostas. Esta é, portanto, uma história que ainda continua em outros textos que se seguem. A seguir, nesta série: Os Primeiros Termoscópios.

PARA CITAR ESTA FONTE: Medeiros, Alexandre. Os Primórdios da Ideia de Temperatura. BLOG Física e Astronomia_Alexandre Medeiros, BLOG.
http://alexandremedeirosfisicaastronomia.blogspot.com/2011/10/os-primordios-da-ideia-de-temperatura.html. Acessado em 19 de Outubro de 2011. (atualizar a data).