sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A Física do Karatê

Alexandre Medeiros (PhD, University of Leeds – Professor de Física e Astronomia, UFRPE)

SÉRIE DE TEXTOS: A FÍSICA NO DIA A DIA
AUTOR: Alexandre Medeiros
TÓPICO: MOMENTO LINEAR – TORQUE – RESISTÊNCIA DOS MATERIAIS

TÍTULO DO ARTIGO: A Física do Karatê

Qual a explicação física para o fato dos praticantes de karatê conseguirem quebrar montanhas de tijolos apenas com as próprias mãos?

Há muita Física contida nos golpes de karatê desferidos sobre tijolos e, assim muitos conceitos físicos se mostram relevantes na análise apropriada dos fenômenos envolvidos.

Dentre estes, destacamos: a estrutura de agregação dos tijolos, as forças atuantes sobre os mesmos, as pressões exercidas (que dependem da área de impacto das referidas forças), o tipo de equilíbrio dos tijolos, a velocidade da mão no instante do golpe, o momento linear e a energia cinética da mesma, o torque exercido pela força de impacto na linha central do tijolo em relação às suas extremidades, a rigidez e a flexibilidade dos materiais envolvidos na colisão, assim como as oscilações ocorridas nos corpos durante esses choques.

Certamente, a correta execução dos golpes de karatê sobre tijolos exige muito treinamento e concentração, para apurar a sua técnica de execução. Há, entretanto, muita mistificação em torno do assunto, a começar por algumas das alegações frequentes de seus praticantes, os caratecas.
Dentre essas alegações, consta a de que não existem truques no karatê, de que tudo se resume, principalmente à utilização de um certo tipo de “energia do pensamento” e coisas assim. Isso, entretanto, é puro mito e o que importa, de fato, são as condições (e os truques baseados na Física) com que esses golpes são desferidos.
Um ponto central no karatê é a velocidade que a mão do carateca atinge no instante do impacto. Medidas de tempo feitas com estroboscópios eletrônicos de flash múltiplo mostraram que enquanto a mão de um iniciante no karatê consegue alcançar apenas uma velocidade máxima em torno de 6,1 m/s; a mão de um mestre faixa preta do karatê atinge algo próximo de 14 m/s. Essa é, sem dúvida, uma enorme diferença resultante de muitos anos de treinamento.
Caratecas alegam que atingindo um obstáculo com esta velocidade e indo muito rapidamente ao repouso, uma mão com uma massa em torno de 0,7 kg, consegue exercer uma força de aproximadamente 2800 newtons. Observe-se, entretanto, que o tempo de desaceleração da mão é de fundamental importância neste cálculo, pois o valor da força é calculado com base na rapidez da transferência do momento linear. Ou seja, a força média exercida pela mão sobre o tijolo é dada por:
Ocorre, entretanto, que para chegar a esse colossal valor de 2800 newtons, os referidos caratecas admitiram, como um fato inconteste, que o tempo de desaceleração da mão teria sido muitíssimo pequeno. Isso, no entanto, nem sempre ocorre na prática, como veremos adiante. Esses valores estupendos de força exercida pela mão, não são, portanto, realmente dignos de crédito.
Onde estaria, então, o segredo desses golpes aparentemente “mágicos” do karatê?
Tem sido igualmente alegado pelos praticantes do karatê que outro “segredo” importante estaria no fato de que o mestre carateca focalizaria o seu punho em sua imaginação, de modo que a sua ação terminasse no corpo de um inimigo e não na superfície do bloco a ser golpeado. Em acréscimo, tem sido também alegado por caratecas que para desenvolver a potência máxima, o praticante deveria “fazer contato com o objeto antes de a desaceleração ter início”.
Esta alegação, entretanto, é um completo absurdo. Ainda que possamos admitir que a primeira (e mórbida) alegação faça um certo sentido psicológico; qual seja, a de que o indivíduo movido pelo ódio ao seu inimigo possa colocar integralmente as suas energias no golpe, isso nada tem a ver com a segunda alegação, que é pura mistificação. De fato, não faz nenhum sentido físico, a alegação de que o carateca deveria “fazer contato com o objeto antes de a desaceleração ter início”. Isso é apenas um mito; afinal, o que significaria fazer contato antes da mão começar a desacelerar? Tão logo o contato físico entre a mão e o tijolo é feito, inicia-se imediatamente a desaceleração. E é justamente o tempo em que essa desaceleração se completa que determina o valor da força exercida. Esse é o verdadeiro e único segredo de qualquer tipo de amortecimento: o uso correto do Teorema do Impulso-Momento Linear.
Há, certamente, algumas alegações dos caratecas que são fisicamente corretas; como a precaução de que o braço do praticante deve atingir a velocidade máxima do golpe quando estiver aproximadamente 70% – 80% esticado. Agindo deste modo, ele utiliza não apenas os músculos peitorais, do ombro e das costas; mas, igualmente o geralmente poderoso músculo do bíceps. Por outro lado, golpear com o braço completamente esticado seria, de fato, uma temeridade, pois sem o devido apoio, o impacto recebido poderia facilmente fraturar o antebraço.

Não apenas a preparação e o posicionamento do golpe, assim como a consequente aquisição de uma alta velocidade são fatores importantes em seu sucesso; o que acontece após o contato da mão com o tijolo é também de fundamental importância. Isso ocorre porque todos os materiais são ao menos parcialmente elásticos, ou seja, eles tendem a oscilar, quando devidamente golpeados. Entretanto, quando se atinge os limites de elasticidade do material, este começa a se romper. No presente caso, importa que se considerem também as oscilações e os possíveis rompimentos do tijolo, assim como dos ossos do carateca.
Felizmente, não é tão fácil, como habitualmente se pensa atingir o limite de resistência dos ossos, quando estes são golpeados de forma correta que facilite a propagação uniforme da energia. Ossos fortes e sadios são feitos de um material bem mais resistente do que o concreto normalmente utilizado no karatê. Para que se tenha uma idéia do valor dessa resistência, um cilindro de osso com um diâmetro aproximado de 2,5 cm e um comprimento em torno de 6 cm, pode suportar uma incrível força de até 25.000 newtons. Além disso, tecidos mais moles, como pele, músculos, ligamentos, tendões e cartilagens podem absorver impactos muito acentuados, justamente pelo fato de serem mais deformáveis, de terem uma maior elasticidade. Esta é mais uma consequência do Teorema do Impulso-Momento Linear. Deste modo, como alegam costumeiramente os caratecas, o fortalecimento desses tipos de tecidos poderia contribuir positivamente para a absorção de golpes muito fortes.
Baseados nesta assertiva, os caratecas costumam recomendar a prática rotineira de exercícios como chutar alvos rígidos e pesados revestidos com almofadas de amortecimento que possam vir a causar o fortalecimento progressivo dos ossos, dos músculos e dos demais tecidos acima relacionados. Segundo eles, não apenas os ossos ficariam mais fortalecidos, como também calos seriam criados nas mãos e nos pés atuando então como verdadeiros amortecedores, absorvendo e difundindo as forças geradas nos impactos. Exames radiográficos têm, de fato, constatado o hiperdesenvolvimento ósseo ocorrido nas mãos dos mestres caratecas após anos de treinamento intensivo.
Essas afirmações dos caratecas, entretanto, não parecem de todo convincentes, pois os calos desenvolvidos teriam de ser gigantescos, para que o comprimento  de suas deformações elásticas durante os referidos impactos fossem realmente relevantes; visto que o valor desse possível amortecimento é proporcional ao valor do deslocamento das partes dos membros envolvidos até a parada total.
O fato é que há uma certa contradição nas intenções dos caratecas ao executarem os impactos em tijolos. Por um lado, eles desejam que esses impactos liberem o máximo de energia cinética para que os tijolos sejam devidamente fraturados; por outro lado, entretanto desejam também que seus punhos e braços não sejam simultaneamente fraturados. São duas intenções difíceis de serem conciliadas. A segunda intenção (de proteção de seus punhos) implica no desenvolvimento de algum tipo de amortecimento, o que discutiremos mais adiante; a primeira intenção (de liberação da máxima energia cinética nesses impactos) será analisada logo agora.
O karatê proporciona uma interessante aplicação das colisões inelásticas. Um carateca tenta desativar um adversário ou quebrar um tijolo, transformando a sua própria energia cinética em trabalho de deformação, em uma área vulnerável do seu adversário ou do tijolo. Uma vez que a fração da energia cinética transformada em trabalho de deformação é maior quando a massa em movimento é pequena, o carateca tenta liberar uma grande quantidade de energia cinética com uma parte relativamente pequena do seu corpo, como um braço ou a lateral da mão. É por isso que os golpes de karatê têm esta caracteristica marcante essencial.
Mas, como sabemos que a fração da energia cinética transformada em trabalho de deformação é maior quando a massa em movimento é pequena?
É possível mostrar facilmente que em uma colisão completamente inelástica, a energia cinética final é pequena quando a massa em movimento m1 é pequena quando comparada com a massa estacionária m2. Assim, a maior parte da energia cinética é perdida na colisão.
Com efeito, em uma colisão completamente inelástica (aquela após a qual os corpos movem-se em conjunto), a quantidade de energia mecânica perdida na forma de calor e de trabalho de deformação depende das massas relativas dos dois objetos que colidem. Suponhamos, por exemplo, que um punho de massa m1 e velocidade v1, colide com um grande bloco estacionário de massa m2 e eles então passem a se mover em conjunto dai em diante com uma velocidade v´. A razão entre a energia cinética final e inicial deste sistema é então:
Por outro lado, a conservação do momento linear nesta colisão, exige que:
Substituindo este valor de v´ na equação acima, que nos dá a razão entre as energias cinéticas antes e após o impacto, temos que:
Este resultado implica que a energia cinética final é pequena quando a massa em movimento m1 também é pequena em comparação com a massa estacionária m2. Neste caso, a maior parte da energia cinética é perdida na colisão na forma de trabalho de deformação corpos em colisão e em som e calor.

Diante desta grande liberação de energia cinética (necessária em colisões completamente inelásticas com objetos massivos e rígidos), há de se questionar o que fazer para proteger os membros do carateca. Em outras palavras: o que fazer para garantir ao mesmo o necessário amortecimento. Uma parte da resposta reside no desenvolvimento de mecanismos naturais de amortecimento surgidos com o treinamento contínuo. Há, portanto, muita esperança, da parte dos caratecas, colocada nos referidos treinamentos, o que não necessariamente condiz integralmente com a realidade. O que há de se enfatizar é que apesar de todo esse treinamento e consequente hipertrofia óssea e muscular, há também muitos truques, e por vezes até mesmo algumas fraudes, envolvendo a Física no karatê. O objetivo dos mesmos é fazer parecer que os objetos a serem quebrados são mais rígidos do que na realidade o são.
Analisemos, por exemplo, os tijolos utilizados no karatê e o modo usual de quebrá-los mesmo quando empilhados aos montes para quebras simultâneas.
Em primeiro lugar, os caratecas, por precaução, costumam usar tijolos frágeis de vários tipos: tijolos de cimento (conhecidos como tijolos salmão), tijolos cerâmicos (igualmente frágeis) e tijolos de gesso (blocos). Os tijolos de cimento, por exemplo, são os mesmos usados frequentemente na construção de paredes internas de edificações e são feitos para nunca ficarem expostos às intempéries naturais. Eles são mais frágeis e mais fáceis de quebrar do que qualquer outro tipo de tijolo, por serem constituídos por um material poroso e de alta granulação, o que facilita enormemente a sua fragmentação ou mesmo a sua total desagregação.
Na figura abaixo, à esquerda, vemos um típico tijolo de cimento utilizado no Karatê. Na figura da direita, temos uma visão ampliada de um típico tijolo de cimento para Karatê. Fica evidente a alta porosidade do material constituinte do mesmo e, assim sendo, a razão de ser de sua decorrente fragilidade.


Outras fotos podem auxiliar na evidenciação da fragilidade dos tijolos usados no karatê, mesmo quando homogêneos, e na sua consequente e fácil desintegração frente aos impactos sofridos.

Em golpes normais, sobre tijolos de cimento, desferidos com a parte lateral da mão ou do braço, a força exercida pela mão concentra-se sobre a linha central do tijolo, facilitando a sua ruptura mais uniforme e homogênea.
Entretanto, em golpes mais fortes, desferidos com o punho (em vez de usar a parte lateral da mão ou do braço), sobre tijolos de gesso, a área de atuação da força torna-se mais espalhada. Não havendo, neste caso, uma concentração da força ao longo de uma linha, torna-se difícil obter um rompimento uniforme de um tijolo de gesso, como o da figura ao lado. Evidencia-se, também aqui, mais claramente, a fragilidade do tijolo utilizado, pois ele chega a se desagregar em inúmeros e pequenos pedaços.

Um segundo procedimento habitual dos caratecas é o de escorarem o tijolo a ser quebrado sobre outro tijolo de modo a facilitar a fratura do mesmo.  Com isso, eles conseguem que os tijolos se quebrem mais uniformemente, sem produzir arestas afiadas que poderiam ferir as mãos. Assim, quando o carateca quebra um tijolo frágil e devidamente escorado, ele está usando a aresta do tijolo de baixo para facilitar a fratura do de cima. O choque com uma área mais reduzida aumenta o valor da pressão sobre aquela linha de contato, facilitando a possibilidade uma ruptura efetiva.
Em terceiro lugar, eles fazem o tijolo a ser quebrado repousar sobre outro tijolo e o inclinam levemente de modo que o tijolo de baixo atue com o fulcro de uma alavanca. Além disso, por estar levemente inclinado, o tijolo de cima, ao colidir com o de baixo já possui uma certa velocidade, o que faz com que o choque seja mais impulsivo. Para completar, esse choque se dá sobre uma aresta do tijolo de baixo, aumentando deste modo o valor a pressão, devido à redução da área de contato entre os dois tijolos.
Outros detalhes são igualmente importantes de serem analisados na técnica utilizada nos golpes de karatê em tijolos. Na forma de empilhar os tijolos, observe-se que há ressaltos nas extremidades dos mesmos, de modo que eles ao ficarem apoiados, uns sobre os outros, este apoio se dá exclusivamente sobre tais pontos, ficando assim, a maior parte dos tijolos, em uma frágil suspensão, como mostra a figura seguinte. Os tijolos, além disso, são apoiados exclusivamente por estas extremidades Cria-se, assim, um espaço vazio entre as partes centrais dos tijolos suspensos.

Outro ponto importante no karatê é a forma como se dá o impacto sobre o tijolo.  Como mostra a figura seguinte, o golpe do carateca é desferido exatamente na linha central do tijolo superior, fazendo com que estes girem em torno dos pontos de suspensão localizados nas extremidades do tijolo e deste modo, o torque em relação a esses referidos pontos de apoio seja máximo.
Outra decorrência do fato das partes centrais dos tijolos estarem suspensas, é que elas fazem o maior percurso possível até atingirem o tijolo de baixo. Isso maximiza o valor do momento linear do tijolo superior ao atingir o tijolo inferior.
O golpe do carateca, sobre tijolos de cimento, é usualmente desferido ao longo de uma linha central (área mínima possível) fazendo com que a pressão exercida seja maximizada. Entretanto, para que a força exercida não frature o braço do carateca, assegura-se que por este choque se dar justamente nesta linha central do tijolo (mais frágil), ele se rompa mais facilmente. Em consequência, o braço do carateca afunda ao longo dos tijolos de baixo aumentando o intervalo de tempo de parada, o que, devido ao Teorema do Impulso-Momento Linear:
diminui o valor da força exercida sobre o braço do mesmo.

Assim, qualquer aumento no intervalo de tempo Delta t de parada do braço do carateca, ocasiona uma redução no valor da força F exercida pelo tijolo sobre o mesmo.
Observe-se, ainda, que à proporção que mais e mais tijolos vão sendo rompidos; o peso cumulativo dos tijolos de cima (tijolos estes, agora já em contato com o tijolo imediatamente abaixo) facilita a ruptura dos tijolos de baixo.
Por outro lado, às vezes, a utilização de um bloco superior um pouco mais rígido que os demais abaixo dele, pode fazer com que a vibração do mesmo (causada pelo impacto com a mão do carateca) seja transmitida aos blocos de  baixo de tal modo que estes sejam rompidos sem que o bloco de  cima tenha sido ao menos levemente fraturado. Isto é uma decorrência das diferentes tensões de ruptura existentes entre os materiais e as diferentes formas de propagação das oscilações mecânicas nestes mesmos materiais.  Este fato incomum, pois evidencia a presença de algum artifício com fundamento físico, é documentado na figura seguinte na qual, o bloco superior tem menor porosidade, sendo mais rígido que o de baixo, bem mais poroso.

Além desses truques comuns, todos eles baseados em conceitos e em princípios físicos, como comentado anteriormente, há de se salientar ainda a existência de algumas conhecidas fraudes. Dentre estas, uma das mais comuns é a utilização de tijolos com problemas estruturais, já previamente fraturados, conforme indicado nas figuras abaixo.
Um tijolo de karatê já previamente fraturado parece muito com um tijolo normal, mas ao receber um impacto ele facilmente se desintegra. Trapaceiros usam esses tijolos falsos para convencer os incautos de que são verdadeiros mestres, faixa preta, do karatê. Com fraudes ou simplesmente com truques, o certo é que a prática do karatê está repleta de conhecimentos de Física. 

PARA CITAR ESTA FONTE: Medeiros, Alexandre. A Física do Karatê. Física e Astronomia_Alexandre Medeiros, BLOG.

2 comentários:

  1. Caro Alexandre, muito interessante a sua análise, inclusive pelo aspecto da aplicação da Física Clássica, que serviria claramente para ilustrar aulas de Física do Ensino Médio. Abraço.

    ResponderExcluir
  2. Me surpreendo cada dia mais com o senhor! Parabéns Alexandre, ótimo trabalho! sucesso!

    ResponderExcluir