domingo, 16 de outubro de 2011

Mesmer a Doutrina do Magnetismo Animal no Século XVIII

I SIMPÓSIO LATINO-AMERICANO da IOSTE (São Paulo, USP –  2 a 4 de Fevereiro 2000)
(International Organization for Science and Technology Education)

Mesmer a Doutrina do Magnetismo Animal no Século XVIII

Alexandre Medeiros (Departamento de Física, Universidade Federal Rural de Pernambuco)


 
O papel das disputas interpretativas na história da ciência tem sido enfatizado na literatura de pesquisa como um dos fatores relevantes a serem veiculados na educação nas ciências (Cantor, 1981; Matthews, 1994; Medeiros, 1992; Medeiros, 1999). Essa característica tem sido, igualmente, posta em destaque em documentos oficiais no exterior e no Brasil, como, por exemplo, respectivamente, nas recomendações do currículo nacional da Grã-Bretanha, e na versão recente dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ministério da Educação.
O presente trabalho é um estudo de caso histórico onde esta questão aparece contextualizada na forma de um exemplo. Nesta investigação histórica procura-se evidenciar a influência exercida pelos trabalhos e pelas concepções de Franz Anton Mesmer sobre a ciência do século XVIII, em particular sobre a medicina e a física. Através de uma retrospectiva do percurso evolutivo de sua obra e do conflito com a ciência estabelecida da época, tenta-se evidenciar as formas pelas quais o mesmerismo veio a converter-se numa doutrina renegada pelo paradigma dominante à época, apesar de ter continuado a exercer considerável influência na ciência do século XIX. É de singular importância assinalar que muitos dos preceitos do mesmerismo encontram-se incorporados em visões alternativas da atual prática médica, como a homeopatia, sendo, portanto, muito ilustrativo que tal concepção seja discutida nas escolas.
Franz Anton Mesmer nasceu em 1734 na pequena cidade de Iznang, na Áustria, atualmente na Alemanha. Estudou medicina na Universidade de Viena, tendo recebido seu doutorado em 1766 com uma tese que já prenunciava a tônica dos seus trabalhos posteriores: “Sobre a Influência dos Planetas no Corpo Humano”. À época em que apresentou sua tese, esta não foi vista, no entanto, como revolucionária pelas autoridades acadêmicas de Viena. Muito pelo contrário. Havia uma tendência dominante de especular sobre fluidos invisíveis, especulação esta que derivava da concepção cartesiana de mundo, dos questionamentos de Newton contidos no Optics, assim como também das observações feitas por Newton, ao final dos Principia, relativas ao mais sutil espírito que jaz escondido em todos os corpos (Newton, 1982).
As concepções de Mesmer foram desenvolvidas livremente sob a influência da Física newtoniana. A ideia de que corpos como a Lua e o Sol podiam influenciar fenômenos terrestres como as marés parece ter exercido sobre ele um enorme fascínio. Recebeu ainda a influência da obra de Richard Mead que, já em 1704, preconizava que como a gravidade produzia marés na atmosfera assim como na água, os planetas poderiam afetar, igualmente, o balanço dos fluidos no corpo humano (Darnton, 1981). Mesmer associou esta gravitação animal, de Mead, com a medicina, defendendo a ideia de que a saúde resultava de uma “harmonia” entre os órgãos do corpo e os planetas, enfatizando, porém, que tal afirmação nada tinha a ver com as ficções da astrologia, que propugnava há séculos, algo bastante semelhante. Ele acreditava, em verdade, que deveria haver uma conexão entre a gravitação universal newtoniana e o poder do corpo e da mente humana.
Na tentativa de buscar um certo reconhecimento científico para as suas concepções, objetivo que perseguiria durante toda a sua vida, Mesmer substituiu a ideia de gravitação animal, derivada de Mead, pela de um magnetismo animal, inspirado na obra do astrônomo jesuíta Maximillian Hell, que sugerira que o corpo poderia ser influenciado pelo magnetismo e assim utilizara imãs para efeitos medicinais. Uma clara afirmação da adesão de Mesmer a esta concepção encontra-se em sua obra de 1779 sobre “A Descoberta do Magnetismo Animal”. Diferentemente de Hell, porém, que acreditava que as curas promovidas deviam-se diretamente ao poder dos imãs, Mesmer advogava a ideia de que o corpo era, ele mesmo, análogo a um imã e que um certo fluido vital, ou magnético, escoava de acordo com as leis da atração magnética.
Para Mesmer, os corpos celestes, assim como a própria Terra e as coisas vivas afetavam-se uns aos outros através da emanação de um fluido universalmente distribuído que podia receber, propagar e comunicar o movimento. Mesmer aplicou essas ideias ao tratamento médico e utilizando, inicialmente, imãs alegou a obtenção da cura de um parente distante que sofria, aparentemente, de sintomas de histeria como vômitos, convulsões e paralisias. Ele alegava poder colocar as pessoas em transe exercendo conscientemente o magnetismo animal e subordinando seus pacientes inteiramente à sua vontade (Jones, 1996).

Precursor dos métodos hipnóticos, desenvolvidos posteriormente, no século XIX, pelo médico escocês James Braid, Mesmer dispensaria, mais tarde, a utilização dos imãs, substituindo-os por uma grande variedade de artefatos que acreditava poderem influenciar mais provavelmente o poder de sugestão dos seus pacientes. Casado com uma mulher rica, Mesmer estabeleceu uma bem sucedida clínica em Viena e durante os anos de 1768 a 1778, esforçou-se por propagandear os seus aludidos sucessos curativos. Em 1777 viu-se, entretanto, envolvido com o caso de uma famosa pianista cega, Marie Therese von Paradies, que foi retirada com estardalhaço, pelos seus pais, dos cuidados de Mesmer.
Seus métodos e, sobretudo o sensacionalismo da publicidade com que cercava seus procedimentos curativos encontraram crescente hostilidade em Viena por parte da classe médica tradicional, que sentia-se incomodada, terminando por ser expulso da cidade pela polícia. Mesmer teve que se mudar para Paris em 1778, onde veio a causar grande sensação popular com as suas práticas e com o sensacionalismo com que as revestia, tendo ganho o apoio da imperatriz Maria Antonieta. Iniciou uma verdadeira campanha para ganhar o reconhecimento de suas práticas pela comunidade acadêmica francesa.
Em 1780, Mesmer abandona definitivamente o uso direto dos imãs e passa a utilizar vários outros objetos nas suas sessões, principalmente um tubo de vidro que se tornaria famoso, mas que não passava de uma forma modificada de uma garrafa de Leyden, espécie de capacitor primitivo inventado por Peter van Mussenbroek na primeira metade do século XVIII. As garrafas de Leyden eram capazes de concentrar uma grande quantidade de cargas elétricas, podendo dispensar, desta forma, choques violentos. Segundo as teorias de fluidos elétricos vigentes à época a garrafa era vista como um condensador deste fluido.
Mesmer soube utilizar os efeitos produzidos por um tal instrumento com grande destreza sensacionalista, vinculando a crença científica no fluido elétrico ao seu construto de um fluido vital de natureza magnética. Ressalte-se que a crença na existência de fluidos vitais é algo antigo, mas que encontrava grande receptividade à época. O químico escocês William Cullen, por exemplo, sugeria a existência de um fluido inerente aos nervos, denominado “tônus”, para explicar o estado de irritabilidade.
O grupo dos vitalistas, baseando suas crenças nas doutrinas animistas de Stahl, acreditava, mais radicalmente, na existência de um fluido vital ou de uma energia vital. Dentre os vitalistas, muitos como Theophile Bordeu, Paul Bartilez, Philipe Pinel, Johann Blumenbach e Johann Reil, deram suas contribuições à anatomia e à fisiologia no desenvolvimento de suas práticas médicas, seguindo uma tradição que remonta a Hipócrates. Outros vitalistas, entretanto, rejeitando os estudos fisiológicos e anatômicos, preferiram aderir a uma tradição “mágica”, que deriva de Paracelsus. Dentre estes estavam Mesmer, Hahnemann e Rademacher. Hahnemann, por exemplo, fundador da homeopatia, advogava a tese de que as doenças seriam resultantes simplesmente de um desequilíbrio desse “fluido ou energia vital”.
A crença de Mesmer, portanto, na existência de um “fluido elétrico ou magnético animal”, não era um fato isolado, mas estava ligada a um conjunto de crenças vigentes àquela época. Esse pensamento exerceria grande influência sobre alguns cientistas dos séculos XVIII e XIX, notadamente sobre Galvani e Aldini. Luigi Galvani, acreditava, por exemplo, que o cérebro produzia um certo “fluido elétrico”, responsável pelas contrações musculares. Suas descobertas muito contribuíram para o desenvolvimento da nova ciência da Eletrofisiologia e os seus acirrados debates com o conde Alessandro Volta, a respeito da existência da eletricidade animal, encerram um dos mais belos capítulos das disputas interpretativas na história da ciência, cuja complexidade e extensão estão fora do escopo do presente trabalho. Dentro deste quadro de mútuas influências, Mesmer passou então a defender, com vigor crescente, a ideia de que seu próprio corpo atuava como um tipo de imã animal, reforçando o fluido vital ou magnético nos corpos dos seus pacientes.
A doença, dentro do paradigma do mesmerismo era vista assim como um obstáculo ao fluxo dos fluidos vitais. O mesmerismo rompia esse obstáculo produzindo uma crise, frequentemente assinalada por convulsões, restaurando assim a harmonia perdida. O mesmerismo era visto, neste contexto, como uma espécie de medicina natural dentre outras desenvolvidas à época.
Mesmer não fornecia, porém, nenhuma peça de evidência convincente, em termos que pudessem ser aceitos por uma comunidade científica que rejeitava, por motivos variados, a sua teoria. Não fornecia, igualmente, nem mesmo quaisquer descrições mais rigorosas dos seus experimentos que os tornassem reprodutíveis por outros pesquisadores. Muito pelo contrário, suas práticas eram crescentemente relacionadas com um certo ocultismo de tradição hermética, com as formas de procedimento sendo transmitidas apenas aos seus seguidores tidos como iniciados. A grande polêmica que se estabeleceu sobre as suas práticas, com claras acusações de charlatanismo, não impediu, porém, que o estado de transe induzido, abrisse um debate sobre a possível existência de um campo da atividade mental que não parecia estar disponível conscientemente, mas que poderia afetar os pensamentos e as ações dos indivíduos (Crabtree, 1993).
Seus procedimentos heterodoxos terminaram por rapidamente incomodar os membros da Faculdade de Medicina da Universidade de Paris, da Sociedade Real de Medicina e da Academia de Ciências da França, tendo sido acusado formalmente, em 1784, de charlatanismo. Uma comissão real foi criada para investigar suas práticas, supostamente fraudulentas. Desta comissão faziam parte celebridades como Antoine Lavoisier, Benjamin Franklin e o Dr. Guillotin. O relatório da comissão foi francamente desfavorável a Mesmer, concluindo que “a imaginação sem o magnetismo produz convulsões, mas o magnetismo sem a imaginação não consegue produzir coisa nenhuma”.
Os historiadores não estão, porém, de pleno acordo no tocante à alegada charlatanice de Mesmer. Não obstante, seus conceitos terem entrado em crescente desacordo com a ciência do século XIX, a influência do mesmerismo persistiu ainda por longo tempo, embora mascarada sob outros rótulos, encontrando-se ainda viva, nos dias atuais, nas crenças embutidas em determinadas práticas médicas alternativas que ainda se baseiam em conceitos como os de energias e fluidos vitais.
Desapontado com as conclusões da comissão real, Mesmer mudou-se, mais uma vez. Contudo, em 1843, o primeiro sinal de apoio advindo da comunidade científica apareceu por parte dos trabalhos de James Braid que alegou haver conseguido separar o “magnetismo animal“ daquilo que ele denominou o “hipnotismo”, um termo propositadamente introduzido com a finalidade de substituir o mesmerismo. Para Braid as curas obtidas por Mesmer não teriam sido devidas ao magnetismo animal alegado, mas ao poder da sugestão. Foi o desenvolvimento dessas técnicas de sugestão que levou Braid ao hipnotismo.
Anos depois, ainda no século XIX, Jean Marie Charcot viria a interpretar o hipnotismo como simples manifestações de histeria, retornando às explicações magnéticas de Mesmer e classificando três estados de transe: a letargia, a catalepsia e o sonambulismo. As polêmicas de Charcot com os defensores do hipnotismo, principalmente os componentes do grupo de Nancy (Liebault e Bernheim) são um outro belo capítulo das disputas interpretativas na história da ciência, infelizmente, também fora do escopo deste trabalho.
Dentro deste quadro complexo permanece a questão: era Mesmer, de fato, um charlatão ou alguém que simplesmente praticava uma forma heterodoxa de medicina? O espaço restrito deste trabalho, não permite aprofundar este debate tão importante. Fica, apenas, a provocação do debate. Sua resposta, porém, caminha na direção de uma dependência em relação à própria concepção de ciência dos debatedores. As influências exercidas por Mesmer, a heterodoxia das suas práticas e o fundamento das suas crenças, são, entretanto, pontos importantes que podem testemunhar a importância e contemporaneidade de um tal debate em aulas de Biologia e de Física.

Bibliografia
CANTOR, G. Criticism of the Projectile Theory of Light. Physics Education. Vol. 16, 1981.
MATTHEWS, M. Science Teaching: The Role of History and Philosophy of Science. New York: Routledge, 1994.
MEDEIROS, A. Aston e a Descoberta dos Isótopos. Química Nova na Escola. N. 10, Novembro 1999.
MEDEIROS, A. Teachers of Physics Understanding of the Nature of Science with Particular Reference to the Development of Ideas of Force and Motion. PhD thesis. Univ. of Leeds, UK, 1992.
DARNTON, R. Mesmer. In Gillispie, C. (ed). Dictionary of Scientific Biography. New York: Simon & Shuster, 1981.
NEWTON, I. Principios Matematicos de la Filosofia Natural y su Sistema del Mundo. Madrid: Editora Nacional, 1982.
CRABTREE, A. From Mesmer to Freud : Magnetic Sleep and the Roots of Psychological Healing. New Haven: Yale Univ Prress, 1993.
PATTIE, F. Mesmer and Animal Magnetism: A Chapter in the History of Medicine. New York: Edmonston Pub, 1994.
BLOCH, G. (editor). Mesmerism: A Translation of the Original Scientific and Medical Writings of F. A. Mesmer. Los Altos, California: W. Kaufman, 1980.

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